sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Defesa da democracia ou da impunidade?

.
O título acima vai deixar algumas pessoas incomodadas. Muitas delas vão me chamar de “sectário” e de “fazer o jogo da direita”. Mas o momento exige que as coisas sejam chamadas por aquilo que realmente são e/ou pelas consequências que produzem.

A condenação de Lula, se for confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região de Porto Alegre no próximo dia 24, não se dará sem provas. A organização Transição Socialista detalhou de forma muito interessante os fatos e provas que embasam uma possível condenação do ex-presidente [1]. A quem achar que tal agrupamento político é demasiado insano e radical, em suma “sectário demais”, sugiro assistir ao depoimento de Lula em Curitiba e conferir com os próprios olhos as provas apresentadas, a postura dele diante delas, suas declarações contraditórias e o festival do “eu não sabia de nada”. [2]

Que Lula, como réu que deseja livrar-se da condenação, se diga inocente é complemente compreensível. Que o seu partido e militantes o defendam com discurso de vítimas perseguidas também é compreensível, afinal eles querem a sua figura pública mais destacada participando das eleições -- até porque não possuem outro nome viável. Alguém pode alertar que tal comportamento evidencia hipocrisia e contradição por parte do PT, mas isso já não é motivo de espanto há muitos anos já que essa é a rotina de todos aqueles que aderem e se integram ao establishment.

O preocupante é ver organizações de esquerda e militantes sociais honestos que se reivindicam de oposição ao PT reproduzindo as mentiras do lulopetismo. E indo além: colocando a sua valorosa combatividade na linha de frente dessas mentiras a ponto de se dispor a ir em atos em defesa da candidatura de Lula, incluindo a participação no dia 24.

Se fosse apenas desperdício de energia ainda estaríamos no lucro. Mas o comportamento desses camaradas tem consequências nefastas pois 1. deseduca a classe e as suas bases, 2. enfraquece a luta contra o ajuste de Temer uma vez que mesmo que se cole ela na luta pela “democracia” espantaria muita gente que rejeita o ajuste mas não quer ser massa de manobra em atos com dirigentes petistas defendendo Lula (sem falar que provavelmente o ajuste seria invisibilizado como ocorreu durante a curta campanha das “Diretas já”) e o pior de tudo: 3. joga a esquerda na vala comum na qual se meteu o PT pois ao defendê-lo se torna igual a ele aos olhos das massas, dificultando ainda mais o processo de reconstrução desse campo político no país o que interessa ao PT e à direita – e isso sim é que é “fazer o jogo da direita”.

A verdade que esses camaradas não querem admitir é que nos últimos anos abdicaram de construir uma alternativa de esquerda preferindo atuar como linha auxiliar do PT e uma vez que as eleições estão próximas e não possuem um candidato viável resta-lhes votar em Lula nem que seja em um eventual segundo turno para combater a “onda conservadora” que acreditam existir no país. Enxergam o PT como “mal menor” e “menos pior” – mesmo alguns que discordam da “onda conservadora” -- e para dispor dessa alternativa eleitoral em nível nacional precisam defender a impunidade para Lula.

Não é a democracia que estão defendendo mas a impunidade. A democracia burguesa é alicerçada no chamado Estado de Direito. Nesse arranjo é completamente legítimo que o Poder Judiciário retire malfeitores do processo eleitoral. A própria esquerda se queixou por anos que políticos corruptos se elegiam porque a justiça não os impedia.

Aos afobados de plantão esclareço que não estou fazendo aqui nenhuma apologia da justiça burguesa mas apenas explicitando a sua função e as suas possibilidades dentro da democracia burguesa, que é o que os camaradas dizem reivindicar nesse momento.

No que tange à realidade brasileira a desmoralização profunda do regime e a descrença das massas nas instituições levou o Poder Judiciário a tomar algumas providências para evitar o naufrágio completo do status quo. A combinação de crise econômica, política e social cria um ambiente altamente explosivo que se não for minimante tratado pode fugir completamente do controle das classes dominantes. A situação do Rio de Janeiro é bem ilustrativa: dos últimos quatro governadores eleitos, três estão presos e o atual encontra-se enrolado [3]. Isso não é obra do acaso, estamos falando do Estado em que mais tem ocorrido lutas sociais no país dada a situação caótica em que foi jogado pelas políticas em nível nacional e local. Porém, as tentativas de respostas do Poder Judiciário não o tem gerado grande credibilidade: em outubro do ano passado pesquisa do Datafolha apontava que 54% dos brasileiros queriam a prisão de Lula, no entanto, 66% acreditavam que isso não acontecerá. [4]

Nesse contexto seria muito mais pertinente mobilizar pela punição de todos os corruptos, de todos os partidos, do que bradar indignação seletiva. Essa atitude desmoraliza quem a pratica -- no caso a esquerda -- em vez de aprofundar as contradições e o desgaste do regime. Não adianta reclamar do MBL e do Vem Pra Rua e ter a mesma postura deles.

Há quem critique a justiça burguesa que defende que Lula seja submetido a um “julgamento popular”. Seria a instalação de tribunais populares? Nada disso! Estes certamente seriam bem menos generosos do que a justiça burguesa e os nossos camaradas querem o ex-presidente ileso. O “julgamento popular” que defendem é a participação de Lula na eleição. O resultado dela seria o veredito. Curiosamente não defendem essa linha para os políticos de outros partidos e tampouco para os criminosos comuns.

E por falar em sufrágio tem aqueles que gritam que “eleição sem Lula é fraude”! Como se os esquemas de corrupção revelados não tivessem mostrado a influência profunda do poder econômico nas eleições e instituições políticas burguesas desde sempre, tornando os processos eleitorais fraudulentos por si só, inclusive nas vezes em que o petista foi eleito.

Outros argumentam que a candidatura de Lula deve ser defendida porque o imperialismo o teria descartado de vez. É verdade que boa parte da burguesia hoje duvida da capacidade de Lula e do PT lhes proporcionar um governo estável. Essa confiança foi quebrada pelas jornadas de junho de 2013. Não tenho certeza ainda que seja a maioria da burguesia que pense assim. Mas vamos admitir que toda a burguesia de conjunto não queira mais Lula e o PT. Isso seria motivo para defendê-lo? Deveríamos agir como coletores dos descartes do imperialismo? Se a resposta for positiva e não estamos diante da caracterização do “mal menor” ou do “menos pior” para sermos consequentes teríamos que catar e defender todos os outros políticos burgueses fritados e descartados. Como corretamente chamou à reflexão o camarada Adolfo Santos, da Corrente Socialista dos Trabalhadores (CST-PSOL):

“(…) Alguns políticos, como Sergio Cabral e Eduardo Cunha (PMDB), Eduardo Azeredo (PSDB), Pedro Correa (PP), João Paulo Cunha, Antônio Palocci, José Dirceu (PT), já estão inabilitados para participar do pleito eleitoral. Deveríamos fazer uma campanha para exigir a liberdade ou o arquivamento dos processos contra esses políticos para que possam se apresentar nas próximas eleições?” [5]

Alguns insistem na ideia do “golpe de Estado” elaboração criada e difundida pela direção do PT durante o impeachment de Dilma mas que foi levada tão a sério que meses depois o PT aliou-se aos partidos “golpistas” nas eleições municipais, votou em candidatos “golpistas” para as casas legislativas, o próprio Lula pediu para abandonar o “Fora Temer” [6] e já deixou claro que se retornar ao Palácio do Planalto será em aliança com partidos e políticos “golpistas”. Isso sem falar na mãozinha que o PT deu para que “golpistas” se livrassem das encrencas de corrupção que se meteram, cujo fato mais emblemático foi a defesa de Aécio Neves.

Como complemento ao argumento do “golpe” se diz que as vítimas não são apenas Lula, Dilma e o PT mas a esquerda de conjunto e o próprio povo. Se a questão é a retirada de direitos isso já era praticado pelos governos petistas como com a contra-reforma da previdência de 2003; a proposta de contra-reforma sindical e trabalhista de 2005; as inúmeras privatizações, cortes de recursos da saúde e da educação todos os anos para pagar a dívida pública (cuja auditoria foi vetada em 2016), cortes de direitos trabalhistas e previdenciários em 2014 (logo após a eleição) e a elaboração de todas as medidas de ajustes que estão sendo implementadas por Temer (PEC dos Gastos, contra-reforma do ensino médio, contra-reforma da previdência e trabalhista, entrega do pré-sal, etc). Aos que falam em velocidade do ajuste deve-se lembrar que o próprio Lula chegou a defender pressa na votação do mesmo durante o governo Dilma, afirmando que ele deveria ser votado no dia de “amanhã”. [7]

Mas se a questão é o ataque às liberdades democráticas também temos que Lula fechou mais rádios comunitárias que FHC; respaldou o golpe de Estado no Haiti em 2004 tendo enviado tropas para consolidá-lo e não tardou em reconhecer o governo golpista de Honduras [8]; Dilma reprimiu a greve dos operários de Jirau em 2012 tendo desaparecido 10 operários; em 2013 infiltrou agentes para espionar e facilitar na repressão do Movimento Xingu Vivo que lutava contra a construção da Usina de Belo Monte, montou um plano de espionagem do movimento sindical do Porto de Suape, reprimiu as jornadas de junho em aliança com os partidos ditos “golpistas” (sendo que em Porto Alegre ativistas de esquerda respondem a processos até hoje devido à perseguição desencadeada pelo governo Tarso), privatizou Libra com um aparato de repressão jamais visto, editou a Portaria da “Garantia da Lei e da Ordem” para usar as Forças Armadas contra o povo; e por fim a Lei de Terrorismo em 2016 [9]. Em suma, em se tratando de desferir golpes nos direitos do povo e nas liberdades democráticas Lula, Dilma e o PT longe de serem vítimas são algozes como os outros.

Por que então boa parte da esquerda segue sendo “mais realista do que o rei” defendendo a elaboração do “golpe”? Temos aqui que distinguir dois grupos. Um deles usa isso simplesmente como justificativa para defender sua política de linha auxiliar do PT. Outro precisa insistir nessa farsa para não ter que fazer autocrítica, já que esta é vista como perigosa uma vez que pode gerar cisões e migrações para outras organizações.

Como se pode perceber seja qual for o argumento utilizado para a defesa da candidatura de Lula cai-se, inevitavelmente, na reivindicação de impunidade para o petista. Além de ser uma linha política equivocada isso não ajuda no processo de superação do petismo e atrapalha ainda mais a reconstrução da esquerda no país.

Por fim aqueles demasiados impressionados com a direita deveriam olhar para um passado não muito distante. Olhar para uma história da qual muitos deles mesmos ajudaram a construir. Ali reside a fórmula para o credenciamento da esquerda como alternativa e o combate ao crescimento da direita.

Quando estourou o mensalão em 2005 quem foi às ruas “contra a corrupção” e até pelo “Fora Lula” foi a esquerda. Jair Bolsonaro não saiu turbinado, não se criou nenhum Kim Kataguiri, nenhum Fernando Holiday e o “Movimento Cansei” criado pela direita virou piada e desapareceu em pouco tempo. Sem afagos da esquerda, que não tinha nenhum receio de chamar Lula de “chefe da quadrilha”, o PT se viu obrigado a afastar dirigentes e Lula pedir perdão em rede nacional, tudo para estancar uma debandada de militantes e quadros do partido. Em 2006 o PSOL fez a sua melhor eleição presidencial com a maior votação da sua história.

O central da conjuntura segue sendo a luta contra o ajuste fiscal. Temer não desistiu de aprovar a contra-reforma da previdência. É preciso empreender forças e energias para derrotá-la. Desviar parte disso para defender a candidatura de um lobista de empreiteira que já anuncia voltar abraçado nos corruptos de sempre e com os velhos métodos não fortalece a democracia (mesmo essa formal burguesa), não arrancará autocrítica do PT, facilita a aplicação do ajuste e ainda desmoraliza a esquerda como alternativa.



____________________________________________________


[1] Sobre fatos e provas contra Lula. 16/01/2018.

[2] Íntegra do depoimento de Lula em Curitiba. 10/05/2017.

[3] Principais líderes políticos do Rio dos últimos 20 anos estão presos. 22/11/2017.

[4] Datafolha aponta que 54% querem Lula preso e 89% avaliam que Câmara deve autorizar denúncia contra Temer. 02/10/2017.

[5] Debate: Devemos lutar pelo direito do Lula a ser candidato? 20/12/2017.

[6] Não é mais o momento de pedir 'fora Temer', diz Lula. 27/10/2017.

[7] Temos que votar "amanhã" ajuste fiscal, diz Lula em reunião do PT. 29/10/2015.

[8] Os governos do PT diante dos golpes da direita na América Latina. 23/07/2012.

[9] Alguns fatos para refletir sobre democracia e garantias constitucionais. 24/03/2016.


.