domingo, 5 de março de 2017

Do “Fora Lula” ao “Fica Dilma”: o que aconteceu com a esquerda brasileira?

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Em janeiro de 2003, poucos dias após receber a faixa presidencial cercado por um clima de euforia e esperança, Lula anunciava uma Reforma da Previdência que aumentava a idade mínima, introduzia a taxação dos aposentados, acabava com a aposentadoria integral, criava um fundo complementar que privatizava parte da previdência, acabava com a paridade nos reajustes dos servidores da ativa com os aposentados e reduzia as pensões aos dependentes.

Tal reforma, cujas mudanças elencadas acabaram sendo aprovadas no mesmo ano, constituiu-se na primeira grande desilusão dos governos petistas no Palácio do Planalto para setores da sociedade brasileira que por anos lhe haviam depositado confiança e esperança.

A direita tentou canalizar esse primeiro grande desgaste mas acabou neutralizada pela esquerda com o bloco formado pela resistência de alguns parlamentares do próprio PT que não apenas se recusaram a votar a favor da referida reforma como ainda lideraram atos contra ela.

Por tal atitude Luciana Genro, Babá, Heloísa Helena e João Fontes terminaram expulsos por figuras como José Dirceu, Delúbio Soares e Sílvio Pereira acusados, pela Comissão de Ética do partido, de infidelidade partidária! Conhecidos na época como os “parlamentares radicais” se aliaram a outros militantes e lutadores sociais e fundaram em 2005 o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

No ano da sua fundação, ainda antes da obtenção do seu registro definitivo na Justiça Eleitoral, o PSOL se defrontou com o seu primeiro grande desafio: o estouro do escândalo do mensalão no governo Lula.

Ainda que após a Reforma da Previdência o governo Lula houvesse seguido aplicando medidas que contrariavam o discurso petista, como privatizações e o prosseguimento da política econômica do tucano Fernando Henrique, o envolvimento do PT em um escândalo de corrupção constituiu-se na segunda grande desilusão para setores que historicamente confiaram no partido e muitos acabaram rompendo com ele.

O episódio poderia ter gerado um Kim Kataguiri, um Fernando Holiday ou turbinado Jair Bolsonaro. Mas, novamente a direita não conseguiu canalizar o desgaste petista devido à ação da esquerda: PSOL e PSTU organizaram atos unitários contra a corrupção e pelo “Fora Lula” (no caso do PSOL) e “Fora Todos” (no caso do PSTU). PT, PCdoB e movimentos sociais aliados também organizaram atos em defesa do governo mas em menor número.

O enfrentamento que essa parcela da esquerda realizava com o petismo era corajoso e admirável uma vez que se dava em um momento em que Lula e o PT gozavam de amplo apoio e prestígio o que tornava a pressão dos petistas e seus aliados terrivelmente forte.

Curiosamente, quando as contradições sociais se agudizaram, a sociedade brasileira se polarizou e o PT iniciou o seu enfraquecimento é que a esquerda brasileira começou a retroagir no seu correto enfrentamento ao petismo, permitindo que figuras da direita até então marginais crescessem e aparecessem. Por que isso ocorreu?

Ainda que ao longo dos anos mesmo alguns setores da esquerda que enfrentavam o petismo por vezes votassem nele nas eleições como um “mal menor” ou “menos pior” foi em junho de 2013 que a capitulação ganhou um salto de qualidade e a adesão de novas organizações políticas.

Perdida em meio a um fenômeno de massas que deixou de dirigir parte da esquerda assustou-se quando a direita entrou para disputar o movimento. Desacostumada ao enfrentamento de rua com a direita houve setores que simplesmente abandonaram as ruas. Teve ainda o episódio da hostilidade às bandeiras dos partidos na Avenida Paulista, que foi interpretado de forma simplista como “um ataque fascista”, rendendo uma ampla unidade de partidos que ia de organizações que se reivindicam revolucionárias até o próprio PT. Nos parece que neste fato encontra-se o embrião do discurso de “onda conservadora”.

Esses acontecimentos de junho de 2013 fortaleceram a visão daqueles que já analisavam a conjuntura como extremamente difícil, de que a classe trabalhadora estava derrotada e de que era apenas a direita que se fortalecia. O impressionismo que prevaleceu jogou a maior parte da esquerda na defensiva deixando-a cega para as contradições da realidade que mostrava a eclosão de greves pela base, o crescimento do autonomismo, do anarquismo e da própria esquerda socialista (e não apenas da direita) - fenômenos mais do que previsíveis em conjunturas de crise capitalista.

Ora, se enxerga-se apenas derrotas da classe, crescimento da direita, onda conservadora e que o nazismo e fascismo estão na nossa porta não resta dúvidas de que a ação política prioritária é a derrota desses “monstros” e a defesa das conquistas democráticas o que envolveria a formação de uma “frente ampla” com todos os setores que defendem as bandeiras democráticas. O PT, que tem explorado com êxito essa elaboração, deixava de ser combatido para se tornar aliado.

Assim, se em eleições passadas o PT, encarado como “mal menor” ou “menos pior”, recebia o voto envergonhado de parcelas da esquerda e lutadores sociais que se enfrentavam com seus governos nos anos anteriores, o segundo turno das eleições de 2014 assistiu a um engajamento militante de alguns desses mesmos ativistas que só encontrava paralelo na primeira vitória de Lula. A esquerda majoritária capitulava a falsa polarização e, em vez de neutralizar o campo para o crescimento da direita, jogava adubo nele.

A Dilma “Coração Valente” reeleita em um pleito apertado só mostrou coragem para atacar a classe trabalhadora e as classes populares. Como quase todos os governos que aplicam ajustes fiscais viu seu apoio popular se esvair rapidamente. A crise econômica e a crise política, alimentando-se mutuamente, fez evaporar a sua base política. Sem condições de governar foi retirada do poder pela classe dominante em uma manobra que previa um grande acordo nacional posterior para “salvar todo mundo”, inclusive ela e Lula, como fica claro nos áudios de Sérgio Machado com Renan Calheiros e Romero Jucá. Dilma sofreu impeachment mas não teve os direitos políticos suspensos provavelmente devido a este acordo.

Para uma esquerda amedrontada e na defensiva era inútil tentar demonstrar que a saída de Dilma não se tratava de um golpe de Estado; que não era um ataque a um governo popular e de esquerda; que não se tratava de mudanças nos rumos da economia e de que as classes dominantes fritam os políticos da sua própria classe quando não mais lhes interessam, como aconteceu com Silvio Berlusconi na Itália que, desgastado e sem base política para aplicar o ajuste fical, acabou substituído por um representante direto dos banqueiros - fato cuja essência da queda se assemelha muito ao de Dilma.

Assim, a esquerda majoritária no Brasil mergulhou de cabeça no “Fica Dilma”, ainda que tentassem alegar estar apenas defendendo a legalidade, argumento facilmente quebrado quando se perguntava se tratando-se de um governante do PSDB, DEM, PMDB, ou outro da mesma estirpe em situação similar, se a oposição ao “golpe” teria o mesmo vigor e se ocuparia as ruas.

E enquanto atuava como bote salva-vidas do PT em seu momento de naufrágio cabia a Kim Kataguiri, Fernando Holiday, Jair Bolsonaro, entre outros, a crítica dos governos petistas. Sem contraponto à esquerda cresceram e apareceram como figuras destacadas da direita.

A sequência da história mostrou que o ajuste fiscal de Temer nada mais era do que a continuidade do ajuste de Dilma e do PT; de que enquanto gritava “não ao golpe” nos palanques, nos bastidores a direção petista fazia alianças eleitorais com os “golpistas” e votava neles para presidir as casas legislativas do país, incluíndo apoio aos candidatos de Temer no Congresso Nacional; que Lula já dá conselhos e se oferece para ajudar Temer e até busca apoio eleitoral para 2018 entre aqueles que votaram a favor do impeachment e a própria Dilma andou se opondo à cassação de Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Por falar em 2018 há os que, dada a última sondagem eleitoral, já manifestaram o desejo de votar em Lula para derrotar a direita, no caso Jair Bolsonaro, que aparece em terceiro lugar. Pródiga em espalhar o medo a militância petista já aponta o dedo para Bolsonaro na tentativa de angariar os amedrontados da esquerda.

Se o êxito eleitoral de uma possível candidatura de Bolsonaro ainda não possa ser medido com precisão o certo é que tentar enfraquecê-lo jogando-se no colo de Lula provavelmente produzirá o efeito contrário.

As experiências de 2003 e 2005 demonstraram que o melhor caminho para neutralizar ou reduzir as chances da direita é a oposição política firme e decidida da esquerda em relação ao petismo aliada a apresentação de uma alternativa. Colar-se nele serve apenas para inflar a falsa polarização e enfraquecer a esquerda como alternativa política já que ela acaba aparecendo aos olhos de milhões como aliada do PT e, portanto, semelhante a ele.

Felizmente como vivemos uma conjuntura de polarização social, e não uma onda conservadora, os rumos ainda podem ser corrigidos. As medidas de ajustes fiscais são rechaçadas pela maioria da população brasileira e tem gerado crise mesmo na base do Movimento Brasil Livre (MBL), do Vem Pra Rua e até de Jair Bolsonaro.

A luta contra o ajuste fiscal precisa estar colada no “Fora Temer” e pela continuidade das investigações contra a operação abafa do governo e necessita da unidade da esquerda que deve ter uma atuação política que não se deixe capitular ou desviar pelo oportunismo petista, que em última instância deseja a aplicação do ajuste e visa apenas tentar canalizar para as próximas eleições o desgaste do governo que o aplica. Neste sentido, a vitoriosa greve dos servidores de Florianópolis, que passando por cima da direção burocrática do sindicato derrotou os ataques da prefeitura, é uma inspiradora lição.


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