domingo, 31 de março de 2013

Uma breve história da baderna

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Marco Weissheimer
29/03/2013



Marietta Baderna
O prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT), retirou do armário uma surrada palavra muito utilizada pelos militares e seus aliados civis antes, durante e depois do golpe de 1964 que instaurou uma ditadura civil-militar no Brasil: “baderna”. Os baderneiros de plantão foram os estudantes e demais manifestantes que decidiram sair às ruas para protestar contra o aumento do preço da passagem de ônibus na capital gaúcha. Como sói acontecer, o contexto do uso da palavra se repete: o protesto é legítimo, mas descambou para a baderna no momento em que a gurizada passou a “depredar” e tentar invadir a prefeitura. O uso que fazemos das palavras nunca é inocente. Elas, as palavras, têm história e vida própria. A nossa relação com elas também.
Vale a pena lembrar um pouco dessa história para entender um pouco melhor o presente. Em 2011, às vésperas de mais um aniversário do famigerado golpe civil-militar que derrubou o governo constitucional de João Goulart – que, aliás, pertencia ao partido da mesma linhagem do que aquele que abriga o atual prefeito de Porto Alegre -, os presidentes dos clubes militares do Exército, Marinha e Aeronáutica divulgaram a tradicional nota defendendo a lambança autoritária e fascista que patrocinaram em 1964. O uso da palavra “baderna” não poderia faltar na nota que afirma que o objetivo do golpe foi “impedir a tomada do poder e a sua entrega a um regime ditatorial”. E acrescente, em tom solene: “À baderna, espraiada por todo o território nacional, associavam-se autoridades governamentais entre os comandantes militares que procuravam conduzir seus subordinados à indisciplina e ao desrespeito aos mínimos padrões de hierarquia”. Ou seja, para impedir a tomada do poder e a sua entrega a um regime ditatorial, os golpistas tomaram o poder e o entregaram a um regime ditatorial. O uso das palavras, como se sabe, nunca é inocente.
O que muita gente não sabe é a origem da palavra “baderna”. A etimologia do termo, nos ensina o Aurélio, está associada à figura da bailarina italiana Marietta Baderna, que esteve no Rio de Janeiro em 1851, provocando “um certo frisson”. A história da baderna é ótima e muito explicativa a respeito do uso posterior que a palavra passa a merecer. Maria Baderna era, como se dizia antigamente, uma moça liberal e liberada. Muito liberada para a época, na avaliação de alguns. Ela desembarcou no Rio de Janeiro no final do século XIX. Maria Baderna ganhou inimigos ao decidir introduzir, entre os passos da dança clássica, gestos do lundu, uma dança de origem africana. Para piorar, Baderna era dada à boemia e gostava de beber e cantar com os amigos. Esse comportamento inaceitável deu vida nova ao seu nome. A baderna virou sinônimo de barulho, confusão, arruaça, esculhambação.
Segundo o professor Ari Riboldi, formado em Letras pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras (FAPA), pós-graduado em Literatura Brasileira na mesma universidade e um pesquisador da história de termos e expressões da língua portuguesa, Marietta e seu pai vieram ao Brasil fugindo de perseguição política na Itália, cujo território, então, estava em parte dominado pela Áustria. Talentosa, de espírito rebelde e contestador, Baderna logo conquistou uma legião de admiradores, especialmente entre o público jovem. Como costuma acontecer também, a conquista de admiradores andou de mãos dadas com a de inimigos entre as hostes mais conservadoras e moralistas da época, que viam Baderna como uma “ameaça às novas gerações”.
A fama de Baderna no Rio de Janeiro acabou afetando a sua carreira e diminuindo sua aparição nas apresentações de dança. Os seus seguidores, reza a lenda, passaram a protestar contra essa marginalização batendo os pés no chão durante os espetáculos. Seriam eles os primeiros “baderneiros” da história do Brasil. “Dela ficou como legado a ousadia de afrontar as ditas regras sociais e bons costumes e a palavra baderna, registrada como sinônimo de bagunça, confusão, desordem pública”, nos ensina o professor Riboldi.
Voltemos ao presente. Nos últimos meses, Porto Alegre parece ter gerado uma nova geração de “baderneiros”. Os protestos contra o aumento do preço das passagens de ônibus não são um ponto fora da curva. Em outubro de 2012, os “baderneiros” ganharam outra alcunha: vândalos. Naquele momento, os vândalos baderneiros protestavam contra a privatização de espaços públicos e culturais da cidade e também contra o cerceamento de espaços e tempos de lazer. Um desses protestos terminou em choque com a polícia no Largo Glênio Peres, tradicional área da cidade agora sob a responsabilidade da Coca-Cola, onde estava instalado um boneco inflável do Tatu-Bola, mascote da Copa de 2014, que acabou “vitimado” no confronto.
Na visão dos manifestantes, os verdadeiros vândalos estavam instalados em gabinetes da prefeitura, privatizando espaços públicos da cidade, abrindo espaço para a especulação imobiliária avançar sobre áreas públicas e de preservação ambiental, derrubando árvores, empurrando a população mais pobre da cidade cada vez mais para a periferia, entre outras depredações.
Hoje, como na época de Marietta Baberna, os baderneiros são tolerados e mesmo vistos com simpatia pelas mentes mais, digamos, progressistas. Desde que, é claro, não batam os pés no chão durante o espetáculo e não ofendam os bons costumes.
Para quem quiser conhecer um pouco mais da história da inspiradora dos baderneiros, fica aqui uma sugestão de leitura:“Maria Baderna, a bailarina de dois mundos” (Record), de Silverio Corvisieri, ex-deputado e militante do extinto Partido Comunista Italiano. Só podia ser coisa de comunista mesmo…

Extraído de:

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