quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

A produção social da tragédia em Santa Maria

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A tragédia na boate Kiss, na cidade de Santa Maria, na madrugada de domingo (27/01), vitimizando mais de 230 pessoas (a esmagadora maioria jovens), repercutiu fortemente em todo o Brasil e até no mundo.

Como não poderia deixar de ser, as pessoas tem se perguntado, chocadas, sobre as causas e os responsáveis, mas só chegam nas consequências e as confundem com as causas.

No entanto, se não chegarmos nas causas reais, qualquer lei ou proposta será ineficaz, até porque, como veremos, há outras tragédias ocorrendo à nossa volta.


Uma tragédia social

É importante observar que a tragédia ocorrida na boate Kiss não pode ser nivelada a uma tragédia causada por um fenômeno da natureza como um tsunami, um terremoto, etc. Esses têm causas naturais e não sociais. Nesses casos só pode haver punição humana se sua ocorrência já era prevista por técnicos e de conhecimento das autoridades e nada foi feito para salvar as vidas das pessoas.

No caso da boate Kiss é notório os pedidos por punições, revisões legais, fortalecimento da fiscalização, etc. A ação ou omissão evidencia a mão humana na tragédia. Isso, por si só, já demonstra a diferença entre um tipo de tragédia e outro mas é insuficiente para a visualização das verdadeiras causas da tragédia - que são sociais.

Para identificarmos as causas sociais devemos começar olhando para o tipo de sociedade em que vivemos: a sociedade capitalista.

Nessa formação social o objetivo central é o lucro. Na internet alguns comentários do senso comum apontavam para essa característica mas obviamente a tratavam de forma moral. As relações sociais que fazem a roda girar nessa direção não podem ser percebidas pelo senso comum por estarem naturalizadas na prática social. Isso é trabalho para os cientistas sociais, mas infelizmente muitos deles têm vacilado em suas análises, esclarecendo pouco ou nada, ou até mesmo capitulando às teses do senso comum, conforme veremos mais adiante.

Na sociedade capitalista a forma mercadoria necessita se ampliar cada vez mais para acumulação e reprodução do sistema e para isso não poupa nem o lazer. O capital não se apropria apenas do tempo de trabalho mas busca o lucro também com o momento de ócio da juventude e dos trabalhadores.

Nesse contexto as regras sócio-econômicas que subordinam as empresas comuns também se aplicam às boates. Os custos de operação devem ser reduzidos e os lucros ampliados, caso contrário a falência será inevitável. Por isso a Kiss utilizava como isolante acústico um material altamente inflamável como a espuma, que de acordo com a perícia policial foi decisiva para a tragédia. [1] Há outros materiais isolantes mas são mais caros. A mesma lógica teria sido utilizada para a aquisição dos extintores de incêndio, que suspeita-se serem falsos. [2]

A atitude da boate não é um fato isolado. Em 2010, Vitor Noer, então presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre, declarou no programa de debates Conversas Cruzadas da TVCOM (emissora da RBS TV - filial da Rede Globo no Rio Grande do Sul) que era comum a utilização de produtos e materiais de baixa qualidade para reduzir os custos de produção e operação. [3]

A sociedade capitalista também reduz o espaço para se pensar humanamente no outro. Ou ele aparece como um concorrente a ser batido ou só é valorizado caso sua atuação seja funcional ao sistema. A psicóloga Valeska Rodrigues justifica a discriminação e exclusão de pessoas obesas do mercado de trabalho pelo fato delas apresentarem doenças:

"Os empresários não estão totalmente errados em deixar de contratar os obesos. Um obeso tem hipertensão, problemas de coluna e várias outras coisas. O empresário vai querer contratar um funcionário para viver faltando?" [4]

A lógica do lucro na sociedade capitalista é sagrada para a própria sobrevivência do sistema e tudo e todos que se coloquem como obstáculo a ela devem ser evitados, removidos e abolidos. Foi ela que prevaleceu na superlotação e principalmente quando os seguranças da boate Kiss, a pedido de seus patrões, bloquearam a saída da casa noturna para evitar que os frequentadores saíssem sem pagar.

Foram ainda encontrados problemas estruturais e legais na boate como alvará vencido e ausência de saídas de emergência. Essas questões nos remetem diretamente ao poder público, ou seja, ao Estado e a política.

O Estado é, conforme demonstraram Marx e Engels, um instrumento de dominação do setor dominante da sociedade sobre os setores dominados. Os regimes políticos, podem variar de forma, mas têm como essência trabalhar para garantir a manutenção e a reprodução do sistema - no nosso caso em particular, do sistema capitalista.

Nos marcos do capitalismo mesmo os regimes políticos que se dizem democráticos representam na prática as classes dominantes, ou seja, os capitalistas. A crescente percepção de que a maioria não é representada nos executivos e nos parlamentos tem contribuído decisivamente para o descrédito cada vez maior, em escala global, das democracias burguesas e suas instituições políticas.

Quando não estão diretamente atuando na política do Estado aplicando seus planos as classes dominantes compram os políticos, seja de forma legal (financiamento de campanha) ou ilegal (pagamento de propina) para assegurar os seus interesses seja com leis, empréstimos e até mesmo no relaxamento de fiscalizações e vistorias. Ou seja, além de transferir recursos públicos para os bancos e as grandes empresas - sucateando os serviços públicos e produzindo a sua "incompetência" - a "negligência" do Estado ainda pode ser comprada!

No caso particular de Santa Maria não é possível afirmar ainda se havia uma relação dos proprietários da boate com o poder público. Mas os fatos intrigam: como a boate tinha permissão para funcionar com os problemas estruturais que possuía? Como foi permitido o seu funcionamento com alvará vencido? E por que, a mesma prefeitura que fechou a boate do DCE, manteve a Kiss aberta? [5]

Atualmente, o prefeito de Santa Maria, Cézar Schirmer (PMDB), é investigado pelo Ministério Público por improbidade administrativa por ter prorrogado, em 2010, os contratos das empresas de transporte público da cidade em vez de abrir um processo licitatório. [6]


Antagonismo de classes e interesses

Procurei pela internet e encontrei pouquíssimos artigos de cientistas sociais sobre a tragédia em Santa Maria. E dos poucos que encontrei nenhum buscou consequentemente as raízes sociais para esclarecer o trágico evento, conforme eu já havia mencionado.

O artigo "Lições da tragédia de Santa Maria", de Valmor Bolan, doutor em Sociologia e presidente da Comissão Nacional de Acompanhamento e Controle Social do Programa Universidade para Todos-Prouni (Conap/MEC), foi o único que encontrei que ia de certa forma nessa direção.

Bolan responsabiliza a "cultura da permissividade" e "do improviso":

"O que acontece é a cultura da permissividade que grassa hoje por toda a sociedade. Muitas vezes faz-se vista grossa, aqui e ali, e depois vem as consequências, com danos irreparáveis para a população. Pagam-se impostos e não há retorno devido dos serviços públicos. As empresas deveriam cumprir os pré-requisitos necessários para seus funcionamentos, mas muitos preferem fazer a lógica da esperteza. E logo vêm os resultados: acidentes fatais. Esta foi a mesma lógica que ocasionou o desabamento de um prédio, ano passado, no Rio de Janeiro, perto do Teatro Municipal. Um dos sobreviventes foi salvo porque entrou no elevador. Estas situações são diferentes dos casos de calamidades provocadas por desastres naturais, como no caso do tsunami no Japão. Os japoneses mesmo assim mostram que é possível estar prevenidos para minimizar os danos de tais ocorrências. Mas nós, que não temos problemas de terremotos, maremotos ou furacões, penalizamos a nossa população por descaso do cumprimento do mínimo das regras exigidas para o bom funcionamento dos empreendimentos e serviços. Mais uma vez fica comprovado que se nem em situações como estas, que requerem providências técnicas preventivas, imagine só se teríamos preparo para enfrentar - como os japoneses enfrentam - os furores da natureza.

Temos muito que aprender e mudar nossa forma de enfrentar os desafios do cotidiano. Chega de cultura do improviso. O Brasil está na hora de banir a mentalidade permissiva, pois com tal amadorismo, até quando continuaremos vitimando a nossa população? Que a tragédia de Santa Maria sirva de lição para que prevaleça o que Capistrano de Abreu pediu a todo brasileiro, ainda no século XIX, que tivéssemos uma única coisa: vergonha na cara." [7]

E quais seriam as causas da "permissividade" e do "improviso"? Fica o mistério para os menos informados. O mesmo mistério que o sociólogo lança em relação ao não retorno em serviços públicos dos impostos pagos pelos brasileiros. No segundo caso basta olhar para os orçamentos da União para desvendar o mistério, no primeiro para as relações sociais de forma mais ampla.

É verdade que há diferenças culturais entre os países e que estas influenciam nas relações sociais. Mas abordar as relações sociais apenas pelo prisma da cultura é vê-las de forma limitada e incompleta, ainda mais em uma formação social como a nossa, dominada pela forma mercadoria e dividida em classes.

A tese da cultura, utilizada de forma simplificadora, tem sido a preferida de um certo senso comum que se pensa esclarecido, e termina por produzir uma visão estigmatizada de determinados povos, indivíduos, grupos, etc e divinizadora de outros.

Se olhasse para as relações sociais de forma ampla, Bolan veria que o cenário japonês não é tão luminoso quanto ele acredita. Por lá foram desviados bilhões de dólares destinados a reconstrução após a tragédia por ele referida.

Recentemente o Ministro das Finanças do país venerado por Bolan declarou que os idosos doentes deveriam se apressar em morrer para aliviar as contas do Estado. Esse mesmo Ministro despejou trilhões de ienes para as grandes empresas não quebrar quando ocupou o posto de Primeiro Ministro no período de 2008-2009. [8]

Embora o tipo de declaração como a proferida pelo Ministro japonês não seja comum, ela foi sinistramente sincera e jamais pode ser atribuída a uma mente perturbada, maluca ou insana. A lógica de sacrificar os extratos inferiores da sociedade para salvar o andar de cima tem sido a regra praticada em todos os países capitalistas, independente das diferenças culturais. Muda apenas a forma como os governos a anunciam aos seus povos.

Em uma sociedade dividida em classes como a nossa, cada classe social possui interesses próprios e antagônicos aos de outras classes, como já havia constatado o próprio homem da mão invisível do mercado:

"Quais são os salários comuns ou normais do trabalho? Isso depende do contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos interesses, aliás, de forma alguma são os mesmos. Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para baixá-los." (Adam Smith. A Riqueza das Nações, Vol. 1, CAP. VIII - Os Salários do Trabalho)

Atualmente, com a crise financeira, as classes dominantes estão associadas para salvar-se e para isso necessitam sacrificar as classes populares mesmo que isso tenha representado instabilidade política, econômica e social. A vida humana acaba relegada para manter a lógica do lucro do andar de cima. Para isso até mesmo a novas guerras coloniais as classes dominantes têm apelado.


Mais do que punir o individual é preciso atacar o social

Os ajustes fiscais e as novas guerras coloniais têm arruinado e liquidado a vida de milhões de pessoas. São tragédias sociais do dia a dia, muitas vezes aceitas e justificadas "técnica", "científica" e até "humanitariamente".

Para nós que vivemos no Brasil são coisas que parecem distantes. Até nos esquecemos da lamentável ocupação do Haiti que o nosso país lidera (com fins e atuação nada humanitária) e dos cortes no orçamento praticados pelos nossos governos que retiram dinheiro da saúde e da educação para entregar aos especuladores.

A tragédia social originada de uma lógica que coloca o lucro acima da integridade humana está mais próxima de nós do que imaginamos. Vejam-se as remoções forçadas e por vezes brutais de comunidades inteiras como a do Pinheirinho no ano passado, onde milhares de pessoas foram jogadas na rua e viram o pouco que adquiriram na vida ser destruído impiedosamente. Vejam-se os sucessivos incêndios em favelas de interesse da especulação imobiliária [9]. Vejam-se as condições degradantes de trabalho que imperam nas grandes obras do país onde os operários sofrem repressão, perseguição, tortura e até prisão quando resolvem reagir à exploração absurda. Uma exploração que não raramente resulta em cadáveres.

As relações sociais que produzem todas essas tragédias são as mesmas que produziram a tragédia em Santa Maria.

Mas o sistema capitalista não pode abolir suas próprias contradições. Quando as consequências de algumas delas extrapolam os limites mínimos do aceitável e a pressão popular ganha envergadura, alguns indivíduos podem ser sacrificados para que a sua reprodução seja mantida.

Só que a reprodução de uma lógica que coloca o lucro acima da vida humana seguirá criando novas tragédias sociais se não for contida. As relações sociais não podem ser encarceradas mas podem ser mudadas. Ou as mudamos o quanto antes ou ainda derramaremos muitas lágrimas. Isso se as próximas vítimas não for nós mesmos.


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[1] Espuma do teto da boate foi a causa da morte das 236 pessoas, diz delegado (31/01/2013):
http://oglobo.globo.com/pais/espuma-do-teto-da-boate-foi-causa-da-morte-das-236-pessoas-diz-delegado-7457973

[2] Polícia vê indício de que boate Kiss usou extintores falsos (29/01/2013):
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/01/130129_extintores_boate_kiss_cq_cc.shtml

[3] O cliente tem sempre razão? (10/02/2010):
http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2010/02/o-cliente-tem-sempre-razao.html
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Câmara de Dirigentes Lojistas de Porto Alegre. RELATÓRIO DE ATIVIDADES E COBERTURA DE IMPRENSA FEVEREIRO 2010. Uffizi Consultoria em Comunicação.
http://www.uffizi.com.br/Documentos/documento571.pdf

[4] Políticos e sociedade (29/09/2012):
http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2012/09/politicos-e-sociedade.html

[5] Prefeitura fechou Boate do DCE em Santa Maria dias antes de incêndio na Kiss (01/02/2013):
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-02-01/prefeitura-fechou-boate-do-dce-em-santa-maria-dias-antes-de-incendio-na-kiss

[6] ENTREVISTA COM O PROMOTOR ADEDE Y CASTRO (15/01/2011):
http://www.revistaovies.com/entrevistas/2011/01/entrevista-com-o-promotor-adede-y-castro/

[7] Lições da tragédia de Santa Maria (31/01/2013):
http://www.diariopopular.com.br/index.php?n_sistema=3051&id_noticia=MzIxMg==&id_area=NA==

[8] Ministro japonês defende a morte para idosos doentes (26/01/2013):
http://blogdomonjn.blogspot.com.br/2013/01/ministro-japones-defende-morte-para.html

[9] Mapa relaciona incêndios em favelas e especulação imobiliária (12/09/2012):
http://olhardigital.uol.com.br/jovem/digital_news/noticias/mapa-colaborativo-relaciona-incendios-em-favelas-e-especulacao-imobiliaria

Setor imobiliário financiou todos os vereadores da CPI dos Incêndios, em São Paulo; total chega a R$ 700 mil (05/10/2012):
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/05/vereadores-da-cpi-dos-incendios-em-favelas-de-sp-receberam-doacoes-de-construtoras-em-2008.htm

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