domingo, 11 de setembro de 2011

Porque estudar Marx hoje

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Reinaldo A. Carcanholo. Vitória-ES, julho de 2007. [*]


O aporte científico de Marx consiste, na verdade, em um enorme edifício teórico sobre o capitalismo que precisa ser estudado e compreendido em toda a sua profundidade. Nele aparecem descobertas e expostas as leis gerais do funcionamento, desenvolvimento e dos limites da economia capitalista, que demonstram que se trata de uma fase social transitória no interior do processo de desenvolvimento da sociedade humana. [1] Conhecer essas leis é o que permite adquirir uma sólida base para que cheguemos, com nosso esforço, a elaborar, também de maneira científica e não metafísica, respostas adequadas para as perguntas que nos interessam nos dias de hoje.

É a teoria do valor de Marx, em toda a sua amplitude (que engloba entre outras coisas a teoria do capital e da mais-valia, da exploração e do fetichismo, da desmaterialização da riqueza capitalista e, inclusive, a teoria da tendência decrescente da taxa de lucro), que nos permite entender e economia capitalista em suas determinações mais gerais.

A teoria marxista do valor permite-nos concluir, em primeiro lugar, que a contradição principal da atual fase capitalista é a que existe entre a produção e a apropriação da mais-valia, do excedente econômico em valor; que a atual expansão do capital especulativo e parasitário é a manifestação e o agravamento dessa contradição [2]; que essa fase capitalista sobrevive até hoje, e o fez até agora, por mais de duas décadas, sobre a base de uma intensificação sem precedentes da exploração do trabalho. Tal exploração ocorre por meio da mais-valia relativa e absoluta [3], da superexploração dos trabalhadores assalariados e não assalariados de todo o mundo, incluindo os dos países mais miseráveis do planeta.

Essa teoria, entendida em toda a sua profundidade, nos proporciona a convicção científica de que o capitalismo poderá sobreviver à destruição da sua fase atual especulativa, reformulando eventualmente seu funcionamento; mas só poderá fazê-lo destruindo o domínio do capital especulativo. Não há dúvida de que isso só será ou seria possível, ao contrário do que se pode imaginar, por meio de uma adicional elevação da exploração do trabalho, exploração essa que já se encontra em níveis exagerados. Tal situação implicará a intensificação e generalização da tragédia humana que já é manifesta em muitas partes do mundo contemporâneo. Pior que isso, a transição para uma eventual nova fase capitalista pressuporá períodos ou momentos ainda mais terríveis. [4]

Entendida adequadamente, a teoria do valor de Marx, leva-nos a concluir que a relativa comodidade em que se vive nos países mais ricos, mesmo uma parte de seus trabalhadores, não seria possível sem a pobreza e a miséria encontrada nos países periféricos. (...) Obviamente que isso não significa, de nenhuma maneira, pensar que os trabalhadores daqueles países são exploradores dos homólogos dos demais.

Finalmente, a teoria marxista permite entender que, ao mesmo tempo em que é possível uma nova etapa capitalista sob bases modificadas, justamente porque isso pressupõe um período ou momentos extremamente difíceis para a humanidade, abre-se a possibilidade da superação do próprio capitalismo.

Se estamos na vizinhança de uma nova fase ainda mais violenta e mais terrível do capitalismo ou nos albores de um novo mundo, isso dependerá de cada um de nós. Para Marx, a história é uma construção do ser humano, limitada apenas pelas amplas potencialidades de cada momento.


[*] Trechos extraídos do artigo escrito pelo autor em julho de 2007 para a "Apresentação" (p.11-14) do livro Contribuição à Crítica da Economia Política de Karl Marx (Expressão Popular, 2ª edição, São Paulo: 2008).
Reinaldo Antônio Carcanholo é Professor do Mestrado em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo.


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Notas (observações minhas)

[1] Uma das grandes contribuições de Marx foi demonstrar que a sociedade capitalista não apenas não era natural, que era uma construção humana e social como o fora outras sociedades, mas que ela própria tinha relações sociais específicas que transformavam e resignificavam relações sociais anteriores. O capital não poderia ser entendido como uma coisa, mas como uma relação social. Muitos autores buscavam, e alguns ainda buscam, justificar o capitalismo por características identificadas em sociedades humanas anteriores ao capitalismo. Marx demonstrou a falsidade de tal construção teórica pois tais características estiveram, e no capitalismo estão, envoltas na teia de relações sociais do seu respectivo período histórico e social. Se, para pegar um exemplo, o dinheiro já existia antes do capitalismo, é neste último, dentro de sua teia de relações sociais, que o dinheiro se transforma em capital, como demonstrou Marx. Portanto não há o menor sentido em insinuar que, pelo fato de existir dinheiro antes do capitalismo, a humanidade carregava em si própria o germe do capitalismo em seu DNA.

[2] Para Marx as crises capitalistas têm como origem a sua base produtiva envolta em sua teia de relações sociais e econômicas. Assim não existiria capitalismo sem crise financeira e as medidas tomadas para atenuar uma determinada crise criariam as condições para o estouro de novas crises.
Para tentar resolver o desnível entre a capacidade produtiva que gera demasiadas mercadorias de um lado e a queda da renda da classe trabalhadora de outro (que aprofundou-se a partir dos anos 70) foi acionado o capital especulativo e o crédito foi expandido. Observe-se que o capital especulativo foi chamado a resolver uma crise anterior. Logo, o crédito é um dos efeitos da atual crise capitalista, cujas origens são mais longínquas, e não o responsável por ela como imaginam alguns. E se as crises têm como origem a natureza da produção capitalista não será regulando o capitalismo que elas desaparecerão. Até porque olhando para o passado constata-se que o capitalismo regulado também enfrentou crises, e foi para tentar resolver a sua crise, que nos anos 70 ganhou terreno a desregulamentação do mesmo.

[3] Mais-valia: é a diferença entre a riqueza produzida pelo trabalhador e a apropriada por ele. Segundo Marx, é a base da exploração do trabalho no capitalismo.
Mais-valia absoluta: ligada ao aumento da jornada de trabalho. Pode ser percebida de forma mais explícita nos setores do comércio, como lojas, shoppings e supermercados (que nas últimas décadas passaram a funcionar em dias que antes estavam fechados, o que acarretou em aumento da jornada de trabalho); mas também verifica-se em outros setores da economia muitas vezes acobertado por medidas como o banco de horas.
Mais-valia relativa: ligada ao aumento da produtividade do trabalho. Munido de novas maquinarias o trabalhador aumenta a produtividade, gerando mais riquezas ao passo que reduz o custo de sua própria mão-de-obra. Assim, ainda que receba um prêmio por produtividade, o trabalhador, no processo final de produção da riqueza, seguirá se apropriando cada vez menos do seu produto final, intensificando a exploração do seu trabalho.

[4] Na Europa, e em vários países do mundo, as medidas dos governos diante da atual crise têm sido a de aprofundar o atual modelo de capitalismo, qual seja, o neoliberalismo, com o aumento das privatizações, das demissões, de cortes nas aposentadorias, nos salários e nos direitos dos trabalhadores. Parece haver uma impossibilidade estrutural das classes dominantes apresentar um modelo capitalista alternativo. Tratei desse assunto no seguinte artigo:
http://blogdomonjn.blogspot.com/2010/12/expansao-do-neoliberalismo-em-meio-sua.html
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