domingo, 5 de dezembro de 2010

A restauração do capitalismo nos países do socialismo real pela ótica dos "nativos"

Introdução


É praticamente impossível passar os olhos pela História do século XX sem esbarrar na Guerra-Fria, episódio que polarizou posições, influenciou gerações e afetou diretamente a vida de bilhões de pessoas nos mais variados cantos do planeta.

Muito já se escreveu sobre ela e muito segue e seguirá sendo escrito. O seu balanço científico está longe de ter se esgotado.


Em geral o debate sobre a Guerra-Fria, principalmente quando se abordam os regimes da ex-União Soviética e do Leste Europeu, foram - e ainda são - estigmatizados, inclusive por setores da esquerda. A justa crítica ao caráter ditatorial desses regimes, normalmente é seguida de uma desconsideração quase que total de todo o restante. A noção que essa análise constrói é a de que não havia vida para além da repressão das burocracias, que as populações viviam na maior miséria e que não passavam de robôs manipulados por controle remoto pelos governos. Que a propaganda capitalista transmita essa noção é compreensível, mas que isso seja reproduzido por setores de esquerda...

O presente trabalho busca romper essa estigmatização analisando os impactos sociais, econômicos e culturais da restauração do capitalismo nos países do chamado socialismo real. Para isso, mais do que a análise das estatísticas sócio-econômicas, são analisados os níveis de satisfação dos "nativos" (aqui compreendidos como as pessoas que viveram aqueles regimes) através de levantamentos de pesquisas de opinião e principalmente dos depoimentos dos mesmos, publicados em matérias realizadas pela própria grande mídia privada, a qual não teria o menor interesse de embelezar aqueles regimes.

É preciso dizer, desde já, que o presente trabalho não deve ser interpretado como uma apologia dos regimes stalinistas. Ele se propõe a colaborar na desestigmatização do debate sobre esse tema, para melhor clarificá-lo, e mostrar que se o chamado socialismo real não foi o melhor dos mundos tampouco o é o capitalismo.


Agora que eles podem falar, muitos não gostam de escutar.

No ano de 2009 completou-se vinte anos da queda do Muro de Berlim, um dos maiores símbolos da Guerra-Fria. Na Europa vários governos e capitalistas de toda a estirpe prepararam uma grande festa para comemorar a data. No entanto, tal celebração ocorria em meio a uma das maiores crises financeiras do capitalismo desde a Grande Depressão de 1929. Trabalhadores e estudantes de alguns países estavam nas ruas lutando contra o corte de seus direitos, de seus empregos e da drenagem dos seus recursos (salários, aposentadorias, etc) para os grandes bancos e empresas em apuros. Três governos (Letônia, Hungria e República Tcheca) foram derrubados no leste europeu em apenas um mês (O Globo, 26/03/2009) além do da Islândia também ter caído devido à crise. (BBC Brasil, 26/01/2009)

Se com uma mão devia-se celebrar a "liberdade" dos europeus do leste e dos russos, com a outra empreendia-se uma dura repressão àqueles que não aceitavam pagar "livremente" o preço de uma crise que não criaram.

A instabilidade política e social, advinda da crise econômica, inegavelmente ofuscou a festa da queda do Muro de Berlim. Mas teria sido diferente sem a crise? Talvez, mas não muito, pois os "libertados", supostamente alvo da festa, não têm se sentido tão livres assim na nova ordem em que vivem. E nem muito satisfeitos para comemorar alguma coisa. Pelo menos é o que tem sido explicitado pelos próprios em várias enquetes e depoimentos publicados em reportagens na grande mídia.

Devido a data, uma série de matérias foram realizadas em 2009, em especial na Alemanha. Algumas delas buscavam medir o grau de satisfação dos alemães que viveram no lado leste com o país unificado sob a égide do capitalismo. A manchete da matéria da revista alemã, Der Spiegel, certamente surpreendeu muita gente: "Maioria dos alemães orientais sente que a vida era melhor no comunismo." (BOL Notícias, 05/07/2009)

"Hoje, vinte anos depois da queda do muro de Berlim, 57%, ou a maioria absoluta, de alemães orientais defendem a antiga Alemanha Oriental", lamenta a publicação.

Não menos surpresas devem ter causado os depoimentos dos "nativos" na mesma reportagem:

"A maioria dos cidadãos alemães orientais tinha uma vida boa."

"Com certeza, não acho que aqui é melhor."

"As pessoas que vivem na linha de pobreza hoje não têm liberdade para viajar."

"Não dá para dizer que a RDA era um estado ilegítimo, e que tudo está bem hoje."

"Se a reunificação não tivesse acontecido, eu também teria tido uma vida boa."

"Na percepção do público, há apenas vítimas e carrascos. Mas as massas ficam à margem."

"Eu sei, o que estou dizendo não é tão interessante. A história das vítimas é mais fácil de contar."

As citações destacadas acima são de um cidadão de 30 anos que se identificou como Birger (ele não quis usar o seu nome verdadeiro devido às conotações negativas de ser da ex-RDA) que nasceu no Estado de Mecklenburg-Pomerânia, cursou economia e administração em Hamburgo, morou na Índia e na África do Sul, e conseguiu um bom emprego na cidade ocidental de Duisburg. Trata-se, portanto, de alguém que está muito bem acomodado no novo regime, desarmando de cara à quem pudesse erigir o argumento de que ele seria um "fracassado" na nova ordem e que por isso expressaria tais posições.

Birger não deixa de reconhecer a repressão empreendida aos seus cidadãos:

"não era uma coisa boa que as pessoas não pudessem sair do país, e muitos foram oprimidos".

Mas ele lembra da repressão na Alemanha unificada e democrática:

"No passado havia a Stasi [polícia secreta da Alemanha Oriental], e hoje existe (o ministro de interior da Alemanha Wolfgang) Schäuble - ou o GEZ (o centro de arrecadação de impostos das instituições de rádio e televisão públicas da Alemanha) - que coleta informações sobre nós."

Esta lembrança de Birger desagrada a própria publicação que afirma que ele está a fazer "comparações questionáveis".

Porém quando se observa o projeto de controle de cidadãos aprovado na Alemanha em 2008 que prevê o monitoramento de computadores pessoais, o grampo telefônico e a instalação de câmeras para vigiar residências, uma medida que apenas legalizou o que já vinha ocorrendo desde 2005, percebe-se que a analogia com a Stasi não é descabida. (DW-WORLD, 26/04/2007, 18/04/2008, 21/04/2008, 12/11/2008)

De acordo com ele e seu grupo de amigos não haveria diferenças sem a reunificação. Trabalhariam em alguma empresa e suas opções de viagem seria Moscou ou Praga, em vez de Londres e Bruxelas.

Thorsten Schön, 51 anos, foi outro cidadão que se deu bem na transição. Ele conseguiu abrir o seu próprio negócio. "Não há dúvida: eu tive sorte", comemorou ele.

Nem por isso ele está satisfeito, como ele mesmo diz na entrevista. Schön sente falta "daquele sentimento de companheirismo e solidariedade" já que "pessoas mentem e trapaceiam em todo lugar hoje, diz ele, e as injustiças de hoje são simplesmente perpetradas de uma forma mais astuta do que na RDA, onde não se ouvia falar de salários de fome e pneus de carro cortados."

Schön aponta "o modo falso como o Oeste pinta o Leste hoje", que os alemães ocidentais "agem como se os alemães orientais fossem todos um pouco tolos e ainda deveriam estar de joelhos em gratidão pela reunificação" e está entre os que afirmam que a RDA "não era um Estado injusto", mas "meu lar, onde minhas conquistas eram reconhecidas".

Ele questiona o que haveria para celebrar e ainda faz as seguintes declarações:

"Antigamente, as áreas de camping eram lugares onde as pessoas desfrutavam da liberdade juntas."

(...)

"No que me diz respeito, o que tivemos naquela época foi menos ditatorial do que temos hoje."


Klaus Schroeder, cientista político da Universidade Livre de Berlim, sente-se alarmado com essa situação:

"Temo que a maioria dos alemães orientais não se identifiquem com o atual sistema sociopolítico."

Ele recebeu mais de quatro mil cartas e mais e-mails (inclusive de Birger e Schön) dos "nativos" com críticas ásperas por suas posições em relação à RDA. Ele está compilando todo este material que apresenta opiniões curiosas como "Sob a perspectiva atual, acredito que fomos retirados do paraíso quando o muro caiu", a Alemanha é um "Estado de escravos" ou uma "ditadura do capital" e até de um homem que "agradece a Deus" por ter vivido na RDA e aponta ainda que só com a reunificação ele conheceu as figuras dos pedintes e dos sem-tetos.

Schroeder parece preso ao institucionalismo e carece de uma análise mais profunda desse processo. Mas não é o único. O historiador Stefan Wolle se limita a censurar os "nativos" por estarem tingindo de cor-de-rosa o passado:

"Memórias tingidas de cor-de-rosa são mais fortes do que as estatísticas de pessoas tentando escapar e os pedidos de vistos de saída, e ainda mais fortes do que os arquivos sobre assassinatos no muro de Berlim e sentenças políticas injustas"

São análises que não dão conta de posições como a manifestada pela artista plástica Baerbel Bohley, 64 anos, em entrevista para a Agência Lusa, publicada no mesmo período da matéria da Der Spiegel. (Agência Lusa, 01/11/2009)

Bohley foi a mais famosa dissidente da RDA e ajudou a organizar vários movimentos de oposição ao regime. Sobre as festividades da queda do Muro ela disse o seguinte:

"Acho muito estúpida e exagerada a ideia de fazer um muro de esferovite só para alimentar as televisões, mas há opiniões diversas, só lá vai quem quer"

(...)

"Pelo que sabemos do que se passa no mundo, não acho bem que se invista tanto dinheiro nessas festividades" (idem)

E sobre as mudanças no país ela observa o seguinte:

"Está tudo muito bonito, os prédios já não estão em ruínas, mas quando entro no supermercado as pessoas deixaram de falar umas com as outras e há mendigos à porta"

(...)

"Não fico mais feliz por comprar mais um par de sapatos de que não preciso, acho que vou viver outra vez para o campo" (idem)

As críticas da dissidente se voltam contra o consumismo, a frieza nas relações sociais e a queda do nível de vida, exatamente o que era apontado pelos "nativos" anteriores. Mas mesmo ela não escapa de rótulos e análises estigmatizadas.

"As pessoas gostam de meter tudo em gavetas, se faço críticas de esquerda, dizem logo que estou com os neocomunistas, embora não queira ter nada a ver com eles", diz ela. (idem)

Outro dissidente desiludido é Werner Lempfuhl, de 67 anos, engenheiro aposentado. Ele integrou setores da igreja luterana que se organizaram contra o regime e ajudaram a derrubá-lo. O aposentado se sente um estrangeiro dentro do próprio país e seu padrão de vida foi fortemente afetado com a transição, tendo sua esposa perdido o emprego de enfermeira e poucas semanas após a queda do Muro foi surpreendido com a visita de herdeiros da casa em que morava e teve que pagar pela segunda vez por um imóvel que já lhe pertencia - os antepassados destas pessoas teriam deixado a casa, e o país, após a Segunda Guerra. (Damasceno, 2009)

Estima-se que um terço dos alemães orientais tiveram que deixar suas casas e restituí-las a um alemão ocidental. (Vidal, Linden; Le Monde Diplomatique, 2004)

Lempfuhl se deparou com mudanças no trabalho:

"Passei, da noite para o dia, a ser responsável por um time de 40 pessoas, quando antes dirigia uma equipe de menos de dez integrantes". (idem)

E não tardou a se decepcionar com o modelo de democracia representativa:

"Que democracia é essa, em que o desemprego cresce, os benefícios sociais são cortados a cada dia, em que o que mais vale é o egoísmo?" (idem)

Antes que surja a vontade irresistível de querer censurar Lempfuhl por ter vivido tanto tempo em um país sem "cultura democrática" é bom lembrar que o atual modelo de democracia representativa tem sofrido questionamentos cada vez maiores, no mundo inteiro, pela qualidade (ou falta de) da sua representação e por estar fracassando na mobilização dos eleitores - nos países onde a presença nas urnas é facultativa a abstenção tem sido cada vez maior.

O engenheiro aposentado ainda lembra das promessas feitas antes da unificação e as contrasta com a realidade atual:

"Os alemães ocidentais nos chamavam de 'nossos queridos irmãos', diziam que gostariam de nos ajudar e tal. Mal o muro caiu e onde está esse carinho, esse respeito que eles diziam ter pelo povo do outro lado?" (...) "Nesse meio tempo, se transformou em indiferença e até animosidade" (idem)

A indiferença e a animosidade se expressam no sentimento de superioridade manifestado pelos alemães ocidentais em relação aos orientais. Os segundos são tratados como cidadãos de segunda categoria e sentem-se discriminados. Tal postura cria uma visão estigamatizada dos "ossis" (alemães orientais) e não permite aos "wessis" (alemães ocidentais) reconhecer pontos positivos do outro lado.

O psicanalista Günter Jerouschek, da Universidade Friedrich; Schiller, de Jena, afirma, porém, que os ocidentais têm mais reservas em relação aos alemães orientais do que o contrário. "Os alemães ocidentais ainda têm, na minha opinião, fortes bloqueios com relação aos orientais", diz, sentimento que também se faz perceber nas gerações mais novas.

Como indício, ele cita a resistência de muitos ocidentais a irem estudar em universidades no Leste alemão, embora lá as condições nas instituições de ensino superior sejam, em boa parte, melhores do que a de faculdades alemãs ocidentais. Jerouschek atribui esse preconceito à autoconfiança dos alemães ocidentais, que vem desde a época da Segunda Guerra e seria, segundo o psicanalista, transmitida de pai para filho. "Os alemães ocidentais interiorizaram sua suposta posição privilegiada durante décadas", afirma. (Damasceno, 2009)

O escritor Ingo Schulze, nasceu em 1962, em Dresden, e viveu lá. Hoje reside em Berlim. É mais um dos que critica a mercantilização (ou a "economização", como ele diz) da vida social como um todo:

"Há dois anos fui a Dresden sem informar os meus amigos, só para poder andar uma vez sozinho pela cidade. Foi uma desilusão. Nunca fiz doações para a [reconstrução da] igreja Frauenkirche, mas gostava de sua forma, e então me encontro diante dela pensando: "Oh Deus, é isso o centro de Dresden?" Mas, ainda muito pior, é o que foi construído ao redor, essa Disneylândia para turistas, de cimento e com uma fachada de gesso.

De repente, percebi: isso que nunca amei, essa mistura de barroco de Dresden e stalinismo, ainda era, de alguma maneira, arquitetura. Ali ainda se podia ler os sinais de um tempo, não era uma coisa qualquer. Agora querem construir no centro de Dresden uma terra de contos de fadas, mas no fundo trata-se apenas de turismo e comércio. O que nunca considerei como arquitetura é subitamente revalorizado e adquire quase um semblante humano."

(...)

"Alegra-me muito que as velhas estátuas de Lênin hajam desaparecido. Mas, por exemplo, em Berlim, pôr abaixo o Palácio da República é um absurdo. Em Berlim sinto um verdadeiro ódio pelo moderno. Tem-se a impressão de que se deve ousar um salto do Império Germânico para a grande República Federal, e isso se estende também a âmbitos menores.

Eu não quero cultuar os prédios caindo aos pedaços e os buracos de bala nas fachadas. Que muita coisa seja demolida, daria ainda para suportar. Mas, o que acontece por detrás dos panos, isso eu acho perigoso: que cada vez mais desapareçam espaços públicos e surjam espaços comerciais. Um exemplo é a praça Potsdamer Platz, em Berlim. Ali são quase todos turistas, nenhum berlinense passa por ali. Aquilo não é um lugar público, ele foi, por assim dizer, entregue às empresas. E o mesmo acontece com tantas outras coisas.

Democracia é a existência de um espaço público. Na RDA, isso era sempre uma coisa oficiosa, mas agora, que realmente existe a possibilidade de se criar um espaço público, nesse momento o comércio ataca e degrada as pessoas a consumidores."

(...)

"Desde 1990, desde quando conheço o Oeste, cada vez mais a economia engole tudo e a política bate em retirada. Por exemplo, por que não se pode fazer do serviço ferroviário uma coisa útil às cidadãs e aos cidadãos deste país? Poderia-se reduzir o preço dos bilhetes e construir uma alternativa ecológica. Por que é que agora a ferrovia tem também que gerar lucros? Há tantas coisas que não acho boas nessa tendência, e isso também me deixa furioso." (DW-WORLD, 16/01/2009)

Steffi Marung, professora e pesquisadora do Instituto de História e Cultura do Leste Europeu da Universidade de Leipzig, em entrevista ao Portal Terra, mostrou como a vida dos alemães orientais era estigmatizada pelo ocidentais:

"Pelas conversas que eu tive, os wessis tinham uma imagem totalmente distorcida da "nossa" vida. Diziam que a gente não tinha o que comer, que não tínhamos tapete ou papel de parede nas casas. Computador então, nem pensar. Pra eles, a nossa vida era chata, todo mundo ficava em casa, não saíam pra se divertir." (Terra, 09/11/2009)

É uma visão construída a apartir da visão dominante difundida:

"(...) a reunificação trouxe uma melhoria sensível no padrão de vida dos 16 milhões de alemães-orientais. Desde o fim do comunismo, a maioria esmagadora das famílias passou a contar com carro na garagem, televisão em cores e outros bens simplesmente inexistentes antes da queda do Muro." (Veja, 03/04/2002)

E a representação distorcida se reflete nas pesquisas de opinião, como a realizada pela Der Spiegel em conjunto com a TNS Forschung em 2007. Foram entrevistadas 1.000 pessoas de duas gerações diferentes (jovens de 14 à 24 anos e os pais dessa geração) dos dois lados da Alemanha.

"Os alemães orientais estão menos satisfeitos e menos otimistas com sua situação do que os que vivem nos Estados que compunham a antiga Alemanha Ocidental. Eles estão muito menos convencidos das virtudes da democracia do que seus colegas ocidentais, e muitos acreditam que o socialismo é uma boa idéia que simplesmente não foi bem implementada no passado.

De fato, as maiores diferenças na pesquisa aparecem quando os entrevistados orientais e ocidentais compartilham suas opiniões sobre a vida na antiga Alemanha Oriental. O Estado comunista recebe notas muito mais altas dos que moram no Leste do que dos que moram no Oeste. Dos alemães orientais de 35 a 50 anos, 92% acreditam que um dos maiores atributos da antiga Alemanha Oriental foi sua rede de segurança social; 47% dos jovens no Leste também pensam assim. Por outro lado, apenas 26% dos jovens ocidentais e 48% dos seus pais expressaram a opinião que a Alemanha Oriental tinha um sistema mais forte de bem estar social comparado com hoje." (UOL Notícias, 20/11/2007)

Diante dos resultados surpreendentes a publicação busca um fio de esperança:

"Há um toque de otimismo nos resultados: apesar de importantes divergências nas opiniões entre os alemães orientais e ocidentais mais velhos, essas diferenças parecem estar encolhendo com a geração mais jovem. Lentamente, o país parece estar se unindo." (idem)

Assim bastaria esperar pela morte da geração mais velha! Mas a situação parece mais complexa. Os jovens do leste além de se deparar com as agruras do novo sistema ainda têm em casa as conversas com seus pais, que gozavam do pleno emprego. Não é por acaso que, de acordo com a própria matéria

"Dos jovens alemães orientais entrevistados, 60% disseram que achavam que era ruim que nada tivesse restado das coisas que se podia orgulhar na Alemanha Oriental." (idem)

E mais uma vez resta uma contraditória censura aos intransigentes alemães orientais:

"De fato, os jovens alemães orientais vêem a antiga Alemanha Oriental sob uma luz mais amena do que seus compatriotas no Oeste. Em algumas áreas, eles têm mais alta opinião sobre o país desaparecido que seus pais - como no que diz respeito ao padrão de vida na Alemanha Oriental. É uma opinião de lentes cor de rosa, que vê uma Alemanha Oriental com emprego para todos, creches para todas as crianças e um sistema de bem estar social que acompanhava o cidadão do berço ao túmulo. É claro, essa geração não foi exposta aos aspectos negativos da vida sob o domínio comunista - como filas de comida e repressão da polícia." (idem)

Os alemães orientais não são os únicos insatisfeitos e incompreendidos. Em 2009 uma pesquisa do Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento constatou que apenas 30% da população do Leste Europeu afirmava viver melhor hoje do que na época do socialismo real e só 15% achava que a corrupção hoje era menor.

"Os motivos para a desilusão são econômicas: salários, desemprego, dificuldades e falta de serviços, como de saúde. "A vida ficou muito dura para a gente", diz Miroslav Babinsky, da Universidade Eslovaca de Tecnologia." (Último Segundo, 06/04/2009)

Apesar desta constatação o próprio meio de comunicação que veicula a matéria sentencia:

"Mas o apoio à democracia e à economia de mercado são incontestáveis." (idem)

Pesquisa divulgada no Le Monde Diplomatique em janeiro de 2001 mostrava o seguinte:

"A Polônia foi a nação que se deu melhor com a transição. Neste país tão católico o comunismo jamais teve vida fácil. Entretanto, 44% dos poloneses de hoje julgam o período do Bloco Socialista como "positivo". Quarenta e quatro por cento dos poloneses estimam que o socialismo é uma boa doutrina, mas que foi "mal aplicada". Trinta e sete por cento fazem uma apreciação positiva do partido comunista, que esteve no poder de 1945 a 1989. Trinta e um por cento deles se dizem descontentes com o período findo com a queda do muro. Somente 41% acham que o capitalismo ainda é um sistema melhor." (Marc Vandepitte, 2005)

E já em 1999 a NRC Handelsblad encontrava que

"(...) 64% dos romenos preferiam viver sob o comando do premiê Ceausescu." (idem)

Na Rússia, que foi responsável pela implantação dos regimes no Leste Europeu no pós-Guerra, o sentimento da população não difere das tratadas até aqui. O leitor que por ventura tenha ficado surpreso no início deste trabalho agora não só não deve se surpreender mais como já deveria estar esperando por isso.

"De acordo com uma pesquisa recente do instituto de estudos sociais Levada, 61% dos russos lamentam a queda da União Soviética, contra 30% que não sentem falta daquela época." (UOL Notícias, 08/12/2006)

O levantamento foi feito no ano em que se completava 15 anos do colapso da União Soviética, fato que, de acordo com o título da reportagem, passou "despercebido na Rússia". (idem)

"Quinze anos depois, nenhuma comemoração ou manifestação foi organizada em Moscou. "Para que celebrar este aniversário?", pergunta Natalia Kokoreva, uma aposentada de 60 anos. "Esta data não é para festejar", afirma.

"Com a queda da União Soviética, minha vida desmoronou", conta Evgueni, 49 anos, gari em Moscou. "Antes, eu vivia bem. Podia sair de férias, ir para a montanha. Agora, nem posso mais visitar meu irmão em Tver", uma cidade a 250 km de Moscou, lamenta." (idem)

As palavras de Evgueni cristalizam as proferidas pelo alemão Birger e evidenciam que a liberdade de locomoção no capitalismo está, em geral, submetida a questão material. Relembrando Birger:

"As pessoas que vivem na linha de pobreza hoje não têm liberdade para viajar." (BOL Notícias, 05/07/2009)

Outra matéria do mesmo ano apontava que

"Segundo as pesquisas de opinião, mais da metade dos russos tem saudade da URSS, porcentagem que supera os 75% nas pessoas com mais de 60 anos." (UOL Notícias, 24/12/2006)

O "despercebido" expressa um sentimento que passa longe da apatia:

"Russos lembram com amargura o 15º aniversário do fim da URSS

(...)

Não há nada a comemorar. Gorbachov nunca foi um comunista. Não pôde preservar a URSS porque tinha outra tarefa em mente, seu desmoronamento", disse hoje o pensionista Gennadi Abashin.

Maria, de 24 anos, expressou opinião semelhante, ao considerar que Gorbachov deveria "ter modernizado o país para evitar a desintegração".

"Entre as repúblicas existiam fortes laços. Tínhamos muitas coisas em comum", disse, enquanto passeava sob a neve em frente ao Kremlin.

(...)

"Gorbachov não calculou bem suas forças. A renúncia foi a melhor decisão que pôde tomar", afirma a pensionista Tania, de 58 anos.

(...)

"Gorbachov contribuiu para o desaparecimento da URSS. E mais, foi a chave do desastre. Deixou-se usar como um títere. Agora, deveria viver como um aposentado e abster-se de participar da vida política.

Seu momento já passou", opinou Boris, de 28 anos." (UOL Notícias, 24/12/2006)

Como percebido, Mikhail Gorbachev, celebrado no Ocidente é hostilizado em sua terra natal. Prêmio Nobel da Paz de 1990, pesquisador em uma fundação que possui o seu nome e acionista da Novaya Gazeta (idem) possui a simpatia de apenas 16% dos russos, conforme constatou outra pesquisa também realizada em 2006. (G1, 18/12/2006)

Outra liderança igualmente festejada no Ocidente mas rejeitada na Rússia é Boris Yeltsin. Nem mesmo o seu falecimento em 2007 foi capaz de abrandar a animosidade dos russos com a sua figura:

"Desmoronamento da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), privatização da economia, guerra na Tchetchênia: os moscovitas reagiram nesta segunda-feira sem luto aparente à morte do ex-presidente russo Boris Ieltsin, que liderou o país de 1991 a 1999.

"Ele vendeu o país e eu tinha confiança nele", afirma Vladimir, 61, médico aposentado que passeia de braços dados com a mulher. "Meu pai, que passou 50 anos no Partido [comunista] pensava que o que seria feito, seria verdadeiramente feito pelo povo. Mas ele não fez isso".

"Quanto à política, pessoalmente, não o respeito, porque já servi no Exército em uma zona de conflito e vi de tudo", afirmou Guennadi Alembaev, 44, referindo-se à primeira guerra da Tchetchênia, que durou de 1994 até 1996.

(...)

"Tenho uma idéia muito ruim em relação a ele, porque, apesar dos aspectos negativos da União Soviética, foi ele que realizou as privatizações, ilegalmente, de maneira criminosa", falou Dmitri Oulianov, 20, estudante de filosofia da Universidade de Moscou." (Folha Online, 23/04/2007)

Em vez de luto, houve até celebração pela sua morte:

"Nas proximidades do Teatro Bolchoi, uma manifestação improvisada por uma dúzia de jovens "festeja a morte de Ieltsin", estendendo bandeiras e cartazes da juventude da União Eurasiática, uma organização nacional marginal.

(...)

"Acho que toda a Rússia se rejubila em silêncio", afirma um dos manifestantes, Pavel Zarifouline, 29. "Ele destruiu o país, só (Mikhaïl) Gorbatchev fez pior". (idem)

Por outro lado, dirigentes como Lênin e Stálin, hostilizados nos países satélites do Leste Europeu, gozam de ampla aceitação dentro de casa:

"Na Rússia, Lênin é ainda muito popular. Sessenta e sete por cento dos russos emitem opiniões positivas a seu respeito. Apenas 15% deles falam de Lênin utilizando termos negativos" (Marc Vandepitte, 2005)

"Aumento de seguidores de Stálin põe russos em alerta" (Terra, 05/03/2009)

"Uma pesquisa recente no Tbilisi Fórum, um popular site sobre política, perguntou se as pessoas tinham orgulho de Stálin ser georgiano; uma minoria eloqüente de 37% das várias centenas de pessoas participantes disseram que sim, enquanto 52% disseram que não e 11% afirmaram não se importar." (G1, 25/10/08 )

É notório que Stálin, denunciado fortemente por Khruschev e outros dirigentes, consiga manter um nível nada desprezível de admiradores:

"Mas Ziyadaliev, de 64 anos, o amigável pai de dois filhos que se veste como Stálin mesmo em dias de folga, insiste em que os negócios poucas vezes estiveram melhores. Ele é freqüentemente contratado para comparecer a casamentos, onde dança a música soviética da Segunda Guerra Mundial.

As vantagens de parecer assustadoramente com o antigo ditador, ele se gaba, incluem refeições grátis, conserto de carro grátis – e passagem grátis através dos pontos de controle nas fronteiras da Rússia.

(...)

"Parecer com Stálin é como ter um visto na Geórgia", disse Ziyadaliev, muçulmano original do Azerbaijão, que já foi motorista de táxi, verdureiro e contador antes de optar pela carreira de ser uma encarnação moderna do tirano soviético brutal e diabolicamente brilhante, Stálin.

(...)

Liana Imanidze, 71 anos, cuja mansão em Tbilisi tem uma escultura de Stálin no jardim e é decorada por dentro com uma réplica de sua máscara mortuária no alto de um pedestal, lamentou que jovens georgianos desconheçam Stálin, incluindo os próprios netos dela. Ela reclamou que eles estão mais interessados em Paris Hilton do que na Segunda Guerra Mundial.

(...)

Em Gori, onde nasceu Stálin, uma cidade provincial cinzenta onde uma estátua de mármore de Stálin domina a praça central, um brinde "ao nosso grande camarada" continua sendo comum em celebrações de nascimentos e casamentos. (...)

Recentemente, no Museu Stálin daqui, jovens funcionários georgianos usando uniformes militares soviéticos vendiam camisetas de Stálin, livros de poesia de Stálin e garrafas de vinho tinto decoradas com a imagem de Stálin, mesmo com pessoas limpando e removendo resíduos de cimento do recente bombardeio russo." (idem)

Contrastando com a penúria atual, Stálin acabou associado a uma era de ganhos econômicos, sociais e heróicos do povo russo, como o crescimento dos anos 30, a derrota do Nazismo e a reconstrução do país no pós-Guerra.

"Nodari Baliashvili, de 72 anos, nascido em Gori e com uma enorme tatuagem de Stálin nas costas e outra de Stálin e Lênin no peito, contou que depois que a guerra explodiu, no começo de agosto, ele estava trabalhando como segurança em uma garagem de ônibus quando um coronel russo entrou de súbito e apontou uma arma para ele.

Baliashvili contou que tirou a camisa e o coronel "baixou a arma, me deu um beijo no rosto, uma garrafa de vodka e chocolates, e disse: 'Vovô, volte para casa'".

Baliashvili, que fez as tatuagens quando era um jovem soldado no exército soviético, disse que o próprio avô dele, um órfão pobre de Gori, foi adotado pelo pai de Stálin, que fez dele aprendiz de sapateiro.

"Tenho orgulho de Stálin ser de Gori", disse Baliashvili. "Ele construiu a URSS. Ele trouxe ordem aonde havia caos. Hoje, tudo está à venda."" (idem)


Nostalgia


Quanto mais vivemos o capitalismo,

mais nos perguntamos o que havia de errado com o socialismo”

Wolfgang Herr, jornalista


A saudade de um período onde as garantias mínimas de vida eram asseguradas (emprego, educação, saúde, aposentadoria, etc) e cujas relações sociais não se pautavam pela mercantilização de praticamente todos os aspectos da vida social tem se feito presente em muitos "nativos" de vários países do antigo bloco do socialismo real.

Em alguns países essa nostalgia tem uma denominação própria. Na Alemanha a fusão das palavras locais "ost", que significa leste, e "nostalgie", que quer dizer nostalgia, deram origem ao termo "ostalgie". Em regiões da ex-Iugoslávia se cunhou a expressão "Iugonostalgia".

Como o atual sistema econômico não os permite desfrutar novamente do pleno emprego, de serviços públicos, seguridade social e relações sociais como antes, uma das formas de reviver esse período é buscar reconstruí-lo através da reedição de produtos, filmes e seriados.

Ainda que a situação seja distinta é irresistível não lembrar do antropólogo Marshall Sahlins e a sua teoria da apropriação do global pelo local para fortalecer seus laços culturais presente em "Cosmologias do capitalismo", ainda que, neste caso, o global se beneficie muito mais do que o local já que vende e lucra com produtos que não só não têm condições de abalar as suas estruturas como não pode trazer de volta os ganhos perdidos pelos "nativos".

""Ostalgie" enche bolsos de camelôs e lojas de internet", anuncia reportagem de 2005:

"(...) em 2005, o comunismo é, antes de tudo, uma ótima mercadoria. Sites na internet vendem tudo o que se encontrava no Leste alemão antes do colapso da Cortina de Ferro – de produtos alimentícios a acessórios militares, de jogos infantis a sinais de trânsito – e transformam a saudade do socialismo em lucro capitalista. Na era da globalização, é possível comprar um quepe da polícia socialista com cartão de crédito.

(...)

O site Osthits.de é um verdadeiro shopping center retrô, oferecendo centenas de produtos, entre relíquias e reproduções (...). Nas variadas prateleiras virtuais do site, cabe de tudo um pouco: gravações de programas da tevê estatal em VHS, CDs, bonecos, símbolos militares – quepes, uniformes e medalhas de honra, por exemplo –, produtos de limpeza e até o mais anticapitalista dos símbolos: a Vita-Cola, resposta socialista ao estilo Coca-Cola de ser e de viver.

Entre os achados estão o ATA, um jogo de memória que só se encontrava do lado "de lá" do Muro, e os bichos de pelúcia para crianças, com sua cara de "feito em casa". Entre os personagens infantis comunistas, Schnappi, o "pequeno crocodilo", foi o que teve a mais bem-sucedida "carreira" após a reunificação. No ano passado, virou hit com uma canção pop insuportável e chegou aos "dez mais" entre os toques especiais para telefone celular. Entretanto, os sinais de trânsito para pedrestre são, de longe, o melhor item, além de bem mais imaginativos do que os da Berlim de hoje.

(...)

A maioria das empresas do setor alimentício da República Democrática Alemã – como era o nome oficial da ex-Alemanha Oriental – foi fechada após a queda do Muro. Na época, os ossis, como são chamados os alemães que viviam no lado comunista até 1989, estavam interessados em experimentar a variedade de sabores do capitalismo. Como bem mostrou o filme Adeus, Lênin, de Wolfgang Becker, a Coca-Cola foi uma das primeiras a chegar.

De acordo com a revista The Economist, porém, o entusiasmo dos ossis pelos produtos industrializados diminuiu rapidamente. Com isso, algumas empresas de alimentos que haviam fechado as portas em 1989 voltaram à ativa. A revista afirma que, em alguns cantos de Berlim, já é possível encontrar empórios em que "99% dos produtos são da ex-Alemanha Oriental". Mas as "ossi stores" já chegaram também a Munique, na Baviera." (DW-WORLD, 30/09/2005)

É um fenômeno que se alastra por outros países do Leste Europeu:

"Por toda a Europa Oriental, vem se alastrando uma onda de nostalgia por antigos produtos e programas de televisão que tiveram o seu auge na época do comunismo.

Bebidas, guloseimas, vestuário, detergentes e sabão em pó, e até mesmo novelas ou séries dramáticas que foram criadas nos tempos do socialismo ressurgiram no mercado e estão tocando uma corda sensível junto aos consumidores." (Spiegel, 03/03/2005)

"Você já ouviu falar da Junak, uma versão da moto Harley Davidson fabricada na Polônia? Ou ainda da Cockta Cola? Provavelmente, não.

(...)

Após uma ausência forçada de quase 25 anos, o famoso Trem Azul, que havia sido inaugurado pelo antigo ditador iugoslavo Josip Broz Tito voltou a entrar em serviço recentemente.

(...)

Hoje, Sima Babic, 72, está viajando no "Velho Trem Azul" - ela é uma das muitas pessoas que estão dispostas a pagar uma alta quantia para reviver uma experiência que foi uma parte importante do passado de glória da Iugoslávia. "Eu queria recordar os bons velhos tempos", diz.

(...) E ela acrescenta: "a nossa vida era tão boa naquele tempo"...

(...)

Na Polônia, o detergente de lavanderia da marca Ludwik, que era o principal produto do gênero durante o regime comunista, voltou a ocupar as prateleiras das quitandas e dos supermercados.

Mas está havendo também uma demanda importante por outros artigos-legados da era do socialismo, explica Ana Kowalska, proprietária em Varsóvia da loja Terceira Mão, especializada no comércio de produtos antigos. Kowalska diz que os seus clientes estão interessados particularmente em comprar aspiradores de pó da marca Tiger.

O seu compatriota Dariusz Rudnicki, por sua vez, se diz extremamente satisfeito com o crescimento constante da procura pelas suas motos Junak: "As nossas vendas têm aumentado em cerca de 20% a cada ano", comemora Rudnicki, radiante de orgulho.

(...)

Vários refrigerantes da família da Coca e da Pepsi que no passado eram fabricados nos países socialistas, também estão celebrando uma ressurreição de sua popularidade.

Quando ele criou inicialmente o seu refrigerante que imitava a Coca-Cola, em 1952, Emerik Zelinka, da Eslovênia, jamais teria imaginado que as suas criações sobreviveriam ao desmoronamento do socialismo e voltariam a desfrutar uma popularidade anos mais tarde, num mundo capitalista.

(...)

A antiga Iugoslávia desapareceu já faz muito tempo - agora, a Eslovênia tornou-se até mesmo um país membro da União Européia - mais ainda é possível encontrar no mercado o refrigerante da marca Cockta. A única coisa que mudou é o seu preço - uma garrafa desta bebida que podia ser comprada por 8 dinares (alguns poucos centavos), custa agora em torno de 1,25 euro (R$ 3,46).

(...)

Os filmes e os programas de televisão produzidos durante a época comunista também voltaram a estar em voga. Na República Tcheca, as ruas ficam desertas no final da tarde, quando é exibida a novela "A Mulher Atrás do Balcão de Vendas". Esta produção é estrelada pela atriz Jirina Svorcova, no papel da vendedora de coração generosa e devotada ao socialismo. As suas realizações e os seus serviços prestados em nome da causa comunista na República Tcheca e na Eslovênia lhe valeram até mesmo uma indicação para assumir um assento no politburo de Praga, nos anos 70.

Na Polônia, a série dos anos 60 "Quatro Motoristas de Tanques e Um Cachorro" foi reprisada seis vezes desde 2001.

Milhões de poloneses nostálgicos continuam a assistir às aventuras desses soldados de infantaria poloneses que lutaram ao lado dos soldados do Exército Vermelho, com o seu tanque T-27 apelidado "Rudy", abrindo caminho rumo a Berlim, no final da Segunda Guerra Mundial.

O bonitão Jan é o comandante da unidade. Ele está apaixonado pela médica russa Marusia, enquanto o seu cão Szarik late toda vez que há alemães por perto e, no final da novela, os quatro heróis hasteiam a bandeira polonesa sobre a porta de Brandenburgo (o monumento mais famoso da capital alemã)." (idem)

E as surpresas não páram por aí. Em alguns casos marcas famosas de produtos ocidentais são preteridos pela reedição dos produtos do regime antigo:

"Nesse país [no caso a Iugoslávia], os criadores de modas estão evitando os modernos e globais tênis das marcas Adidas ou Puma, em proveito dos tênis Tisza. No passado, este fabricante de calçados chegou a produzir modelos que eram vendidos em todos os países do bloco comunista. Agora, esses modelos foram recriados e voltaram a ser distribuídos no mercado. A demanda é grande, em particular entre os adolescentes que gostam de estar na moda." (idem)

Não deixa de ser curiosa esta "febre" de consumo por produtos que sempre foram achincalhados pelos analistas ocidentais. E a ironia se torna ainda maior quando se verifica que em alguns casos os produtos ocidentais são deixados de lado em pró dos produtos da era do socialismo real. Mas, se não podem negar este aspecto da realidade, resta tentar tapar o sol com a peneira:

"Alemães têm saudade de produtos e músicas do mundo comunista. Mas não do comunismo", despista afobadamente a Revista Veja. (Veja, 07/05/2003)

Chamado a analisar o fenômeno da nostalgia no Leste Europeu, o sociológo polonês, Pavel Spievak, consegue, em poucas linhas, entrar em frontal contradição:

"(...) Spievak não chega a perder o sono diante dessas estatísticas, as quais ele acredita serem a expressão de um protesto em relação às incertezas sociais que prevaleceram depois da queda do comunismo.

(...)

O cálculo é simples: a maioria dos habitantes dos países do leste europeu - quer eles sejam dos Estados bálticos, da Polônia, da Eslováquia, da Hungria ou da Eslovênia - continua a afirmar, em todas as pesquisas de opinião, que eles consideram que a sua vida melhorou comprovadamente desde 1989." (Spiegel, 03/03/2005)

No início de 2010 a apresentadora da Rede Globo, Ana Maria Braga, entrevistou, em seu programa, o sérvio Petkovic, jogador do Flamengo. Após mostrar ao telespectador um mapa da região de origem do craque, Ana Maria perguntou ao entrevistado "como era viver em um país com tantas dificuldades", no que recebeu a surpreendente resposta:

"Quando eu nasci não tinha dificuldade nenhuma. Era um país maravilha né! A gente vivia em um regime socialista né, todo mundo bem, todo mundo trabalhando, tem trabalho, tem salário, ... mas problemas aconteceram depois dos anos 80." (You TuBe)

Petkovic é mais um caso bem-sucedido no capitalismo a reconhecer méritos no socialismo real, o qual viveu e conheceu, tornando cada vez mais insustentável a irresistível assertativa segundo a qual os "nativos" nostálgicos seriam gente "fracassada" dentro da estrutura da economia de mercado. Fato que pode ser averiguado no país do craque por muitos chamados "iugonostálgicos":

Eu sinto saudade da Iugoslávia”, disse Troha, um empreendedor esloveno de 33 anos, em um depósito lotado com sua coleção de souvenires da Iugoslávia, que incluem retratos de Tito, máquinas de costura antigas, bonecas infantis sérvias e garrafas de 50 anos de Cockta, a Coca-Cola iugoslava.

Nós não tínhamos nada, mas tínhamos tudo”, ele disse. “Vizinhos assavam os bolos uns dos outros; tínhamos um líder em quem confiávamos. Eu me lembro da minha mãe chorando quando Tito morreu. Eu só tinha 5 anos, mas sabia que o mundo estava prestes a mudar.”

(...)

(...) O domínio de Internet .yu permanece popular para sites. Os croatas abandonaram antigas rivalidades étnicas para votar em canções sérvias durante o concurso de música Eurovision. O basquete, uma paixão unificadora na ex-Iugoslávia, ainda é jogado em um campeonato que inclui as principais equipes de toda a região.

Enquanto isso, a imagem de Tito é usada para vender de tudo, de computadores a cerveja.

Na cidade sérvia de Subotica, no norte, Blasko Gabric, um empresário, ficou tão perturbado quando a Iugoslávia finalmente deixou de existir em 4 de fevereiro de 2003 que decidiu construir a Iugolândia, um parque temático iugoslavo de 1,6 hectare, completo com um mini-mar Adriático e uma réplica do Monte Triglav, o pico mais alto da Iugoslávia.

Gabric disse que o número de visitantes à Iugolândia explodiu recentemente. “No que me diz respeito, eu ainda sou um cidadão da Iugoslávia”, ele disse. “Hoje nós temos democracia e nada em nossos bolsos.”

Aqui na Eslovênia, um próspero país de dois milhões de habitantes, a Iugonostalgia é ainda mais surpreendente, porque o país celebrará neste ano o 17º aniversário de sua decisão de se tornar a primeira república a se separar da Iugoslávia. Ela não experimentou as guerras brutais de seus vizinhos, sua economia é próspera, ela é membro da Otan e recentemente se tornou o primeiro ex-país comunista a assumir a presidência da União Européia.

Mas Troha, que em breve abrirá um Museu da Nostalgia para exibir sua coleção, diz que mesmo assim os eslovenos sentem falta de pertencer ao país maior, multicultural, de 23 milhões de habitantes, que todos conheciam.

(...)

Em Velenie, uma ex-cidade modelo socialista na Eslovênia ainda conhecida por alguns como “a Velenie de Tito”, uma estátua do ditador, com 10 metros de altura, domina a praça central. Olhando para a estátua recentemente, um historiador local, Vlado Vrbic, disse que os eslovenos estavam nostálgicos porque apesar de Tito manter um rígido controle doméstico, os iugoslavos desfrutavam de ensino e atendimento de saúde gratuitos, fronteiras abertas, um emprego vitalício, empréstimos sem juros para construção de casas, aposentadorias generosas e, acima de tudo, paz.

O passaporte iugoslavo era o melhor no mundo e você podia viajar para qualquer lugar”, disse Vrbic, que aos 16 anos viajou de carona de Liubliana até a Índia. “Na ex-Iugoslávia, a aposentadoria era garantida, de forma que você não precisava economizar nada e o expediente encerrava às duas da tarde.” (UOL Notícias, 29/01/2008)

Mais uma vez, os analistas pró-ocidente oscilam entre a estigmatização, a censura aos "nativos" e há até quem erija argumentos com conotação masoquista:

"Os críticos da Iugonostalgia - e há muitos - argumentam que é um sentimento perigoso e anacrônico de bebês chorões fora de moda, que anseiam pela rede de segurança social da era comunista e pelo culto da personalidade de Tito, ao mesmo tempo que ignoram a pobreza, o nacionalismo raivoso do falecido homem-forte sérvio Slobodan Milosevic, a hiperinflação dos anos 90, a repressão e a censura.

Esta nostalgia me confunde”, disse Dimitrij Rupel, o ministro das Relações Exteriores da Eslovênia. “As pessoas dizem que não era tão ruim, que o socialismo era mais humano. Mas todos eram iguais na ex-Iugoslávia porque todos eram pobres. A Iugoslávia era uma ditadura.”

(...)

Tais visões idealizadas do passado irritam historiadores como Jose Dezman, diretor do Museu Nacional de História Contemporânea em Liubliana (...)

(...)

Uma criança vítima de abuso tenta racionalizar o abuso sofrido e escapa da realidade desagradável romantizando o passado”, disse Denzman. (...)" (idem)

Após a queda da União Soviética foram feitas fartas denúncias do antigo regime aos russos:

"(...) esforços não foram poupados para erradicar o comunismo. Desde 1991, os russos estão submersos em arquivos, artigos, livros e programas de televisão que denunciam os “crimes bolcheviques”: terror vermelho sob Lênin e Trotski, “Grande terror” sob Stalin, fome de 1932-1933, gulag, deportação de povos “punidos” ou “suspeitos” de colaboração com a Alemanha nazista, repressões sob Brejnev. A “batalha da memória” conjugada com a promoção dos “valores mercantis democratas” foi levada a termo, com entusiasmo, por grandes mídias, jornalistas, historiadores, respaldada por uma vasta rede ocidental e, sobretudo, americana, de instituições, universidades e fundações – Ford, Soros, Hoover, Heritage, Carnegie, USIS, USAID, sem falar dos filantropos oligarcas da Rússia.

(...)

Os debates contraditórios da época Gorbatchev foram substituídos por acusações contra o “Império do Mal” em todas as suas encarnações. A virulência desse anticomunismo russo é de dar inveja aos cruzados ocidentais. É preciso, a cada momento da crise que ameaça o novo regime, agitar o espantalho do “retorno dos vermelhos” e da guerra civil. A condenação do “bolchevismo” leva à reabilitação de seus opositores, principalmente o movimento branco e as dissidências. Até algumas colaborações com os nazistas são “compreendidas”. É assim que o cronista do Izvestia Maxim Sokolov tenta explicar: “A época era complexa... (o Terceiro Reich) era o único bastião a proteger a Europa da barbárie bolchevique. Se tivesse vivido até hoje, o Reichsfüher SS (Himmler) seria provavelmente honrado como combatente contra o totalitarismo”.

Esse revisionismo caricatural – que ignora os contextos reais, os períodos, os regimes, as sociedades e as culturas muito diversas da história soviética – é contestado por vários historiadores, mas não são eles que dão o tom. Muito mais amplamente difundidos são os best-sellers de Viktor Suvorov. O mais recente, lançado no final de 2002, começa com a seguinte afirmação: “Todos os dirigentes soviéticos, sem exceção, foram crápulas e não valem nada”. (Chauvier, Le Monde Diplomatique, 2004)

A série de denúncias publicizadas não evitou o sentimento de nostalgia dos russos pela União Soviética:

"Bandeiras vermelhas tremulam novamente no 9 de maio, nas celebrações oficiais da vitória sobre a Alemanha nazista, como nos desfiles comunistas do 1º de maio e 7 de novembro. O hino da URSS ressoa novamente. Adolescentes exibem malhas com a inscrição “Minha pátria, a URSS”. Grupos de rock reciclam os “sucessos” soviéticos. A faixa de FM, em Moscou, repercute especialmente canções em língua russa. Cafés da moda e publicidades comerciais também estão cobertos de símbolos soviéticos, testemunhando assim uma “nostalgia” pós-moderna.

Essa volta do pêndulo teve início em meados dos anos 1990. Os filmes soviéticos passam novamente na televisão – “a pedido do público”, dizem as emissoras. Um editorialista se inquieta: o “o povo soviético” está sempre lá, a nostalgia aparece como “a dominante do humor local”. As pesquisas de institutos considerados sérios confirmam: “57% dos russos querem a volta da URSS” (2001), 45% consideram o sistema soviético como “melhor” que o atual, 43% desejam mesmo “uma nova revolução bolchevique” (2003). As opiniões sobre o presente também se mostram pouco “corretas”: descrédito da “revolução democrática” de agosto de 1991 e rejeição em massa (quase 80%) das grandes privatizações “criminosas”. (idem)

Há luta até para manter o domínio de internet:

"Internautas russos estão lutando contra um órgão internacional de gestão da web sobre uma relíquia do passado soviético.

A disputa é pelo domínio .su atribuído ao país pouco antes do colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

O órgão norte-americano que administra a infra-estrutura da Internet, a Icann, diz que o nome do domínio é ultrapassado e quer eliminá-lo. Mas milhares de internautas ainda usam o sufixo e desejam preservá-lo.

Apesar de quase 16 anos terem se passado desde o fim da União Soviética, o domínio .su é cada vez mais popular entre empresas, agremiações e grupos políticos.

(...)

(...) "Queremos salvá-lo", disse Alexei Platonov, diretor do Instituto Russo de Redes Públicas, entidade independente que promove o uso da tecnologia.

"Em primeiro lugar há uma comunidade e em segundo lugar há a história do nome do domínio... É original e oferece endereços de sites que outros domínios não têm mais", disse Platonov.

(...)

O domínio .ru, atribuído à Rússia após o colapso da União Soviética, é o mais utilizado pela maior parte dos russos, mas as pessoas continuam registrando endereços de Internet baseados no sufixo .su.

Números divulgados pelos defensores do domínio .su mostram que há quase 10 mil sites registrados com o domínio e cerca de 1.500 novas páginas foram adicionadas este ano." (Info Abril, 20/09/2007)

Alguns setores políticos ligados a antiga burocracia canalizam a nostalgia e o descontentamento com o atual sistema sócio-econômico. É notório que na Rússia, desde a queda da União Soviética, os dirigentes do país que se sucederam no poder têm raízes na burocracia soviética. Apesar de não desejarem o retorno do socialismo eles não deixam de surfar na onda da nostalgia.

"A Câmara Superior do Parlamento da Rússia votou a favor da volta da foice e do martelo à Bandeira da Vitória, a bandeira oficial do Exército russo.

Os símbolos soviéticos foram removidos há dez anos ainda no governo de Boris Ieltsin. Em meio à nostalgia pelo período soviético, a decisão de restaurar a foice e o martelo foi aprovada no país.

Já no desfile da próxima semana em Moscou, em homenagem à vitória na Segunda Guerra Mundial, os russos vão novamente ter a versão soviética da Bandeira da Vitória, segundo o analista de política russa da BBC, Steven Eke.

(...)

Depois do voto, o chefe do comitê parlamentar de nacionalismo disse que a Bandeira da Vitória era um dos poucos símbolos que continuam a unir todos os russos.

Retirar a foice e o martelo, segundo ele, prejudicou as fundações da Rússia moderna.

Mas também existe, segundo Eke, nostalgia pela União Soviética.

(...)

Nos últimos anos o hino nacional da era soviética tem sido novamente cantado --mas com a letra diferente. Muitas estátuas e monumentos da época foram retirados dos depósitos." (Folha Online, 04/05/2007)

Na Alemanha o Partido Nova Esquerda (Die Linke), fundado em 2007 e que abriga tanto setores da antiga burocracia (PDS) quanto dissidentes do Partido Social-Democrata (SPD), conquistou 76 cadeiras na Bundestag em 2009 (DW-WORLD, 11/2009), com uma votação significativa no lado oriental. Esta região do país já vinha concedendo um sufrágio substancial ao Partido do Socialismo Democrático (PDS) originário da antiga burocracia. (Vidal, Linden; Le Monde Diplomatique, 2004)

Em países do Leste Europeu também alguns setores da antiga burocracia conseguiram alçar o poder. Na Albânia, Fatos Nano foi primeiro-ministro em três oportunidades, sendo que em duas foi pela via do sufrágio. Na Hungria, o Partido Socialista, originário da antiga burocracia, ocupou cinco vezes, de nove, o cargo de premier no país. Em instâncias menores como distritos e cidades membros da antiga burocracia também conseguiram se manter no poder. Em sua etnografia em Tchiprovtsi, na Bulgária, Sophie Chevalier se refere a esta cidade como "vermelha":

"A cidade está também situada numa região onde nasceram vários dirigentes comunistas e ainda permanece politicamente "vermelha" (...). Aliás, em eleições recentes, foi eleito prefeito a mesma pessoa que já o fora antes de 1989." (Chevalier, 2001, p.40)


Considerações finais


Mais do que etnocentrismo


"A burguesia, naturalmente, representa-se o mundo

em que domina como o melhor dos mundos."

Marx, Engels


Apesar da degeneração e da ditadura imposta pelas burocracias governantes, os regimes do chamado socialismo real representavam uma referência para muitos anticapitalistas e uma ameaça para a classe capitalista ao redor do globo. Desta forma, mais do que exaltar o capitalismo e o livre mercado como o ápice da civilização, os capitalistas precisavam apresentar aquelas sociedades como a pior construção social de toda a História humana. Mais do que um simples etnocentrismo estava em jogo uma disputa política, ideológica e de poder.

O caráter ditatorial dos regimes, criticado por muitos socialistas à época, foi o carro-chefe da crítica ocidental que, na carona deste carro, acabou produzindo uma representação que ignorava a existência de uma vida social com suas relações complexas no interior destas sociedades. Essa descrição apresentava aqueles "nativos" quase como indigentes que viviam na maior miséria e como se fossem robôs manipulados o tempo inteiro, por controle remoto, pelas burocracias dirigentes.

Com a queda do Muro de Berlim, dos países do Leste Europeu e por último da União Soviética as classes capitalistas, em meio a ofensiva da globalização neoliberal, empreenderam uma forte propaganda ideológica no sentido de elevar a sua formação social ao patamar de única possível e viável e as leis da economia de mercado como algo natural. Por outro lado, o socialismo tinha de ser enterrado e esquecido para todo o sempre. Portanto, mesmo com a poeira já baixa, o negócio é não relativizar.

Os anos 90 assistiram a extensão do modo de produção capitalista e as relações de mercado para os países do Leste Europeu. E lá encontraram os "nativos" do socialismo real. Foi-lhes feitas muitas promessas. A maioria não se cumpriu. Os índices sociais e econômicos despencaram. O desemprego explodiu! Mendigos e sem-tetos passaram a fazer parte da paisagem. Serviços públicos essenciais foram fechados e privatizados. Como consequência o analfabetismo e algumas doenças anteriormente erradicadas reapareceram.

"A União Soviética retrocedeu economicamente em uns 100 anos. No momento da revolução socialista, em 1917, o PIB per capita era de 10% em relação ao dos americanos. Em 1989, apesar do fato de a União Soviética ter deixado a Segunda Guerra esgotada e praticamente destruída, o PIB per capita alcançava 43% do índice dos americanos. Hoje, o PIB per capita russo é menor de 7% do índice dos cidadãos dos EUA.

(...)

Na Bulgária, Romênia, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Moldova o número de pobres atinge de 50% a 90% da população.

(...)

A esperança de vida dos russos de sexo masculino passou de 63,8 para 57,7 anos, entre 1992 e 1994. Na Ucrânia diminuiu de 65,7 para 62,3 anos.

(...)

As Nações Unidas estimam que o número de mortos nos antigos países socialistas, atribuídos às novas enfermidades (facilmente curáveis) e à violência (guerra) é de 2 milhões nos primeiros 5 anos da passagem para o capitalismo." (Marc Vandepitte, 2005)

"Antes da passagem para o capitalismo, a região vivia um bem-estar social garantido. Um relatório das Nações Unidas descreve: "Antes dos anos 90, as condições sociais nos países da Europa Central e Oriental e nos países da CEI (...) eram notavelmente boas. Havia uma grande segurança social como base. O emprego era garantido por toda a vida. Da mesma forma, se a renda monetária era baixa, era estável e segura. Muitos bens de consumo e serviços básicos eram subsidiados e o abastecimento era regular. Havia alimentação suficiente, roupas e moradias. O acesso à educação e à saúde era gratuito. A aposentadoria estava assegurada e as pessoas podiam desfrutar de outras formas de proteção social" (...).

O relatório continua: "Hoje, uma educação satisfatória, uma vida sã e uma alimentação suficiente não estão asseguradas. A taxa de mortalidade aumenta, novas epidemias potencialmente destruidoras ameaçam e tornam a vida (e a sobrevivência) num crescente e alarmante perigo" (idem)

Os aspectos econômicos e sociais são mais facilmente verificáveis. Mas não foram a única mudança ocorrida. As relações sociais capitalistas mercantilizaram vários aspectos da vida e transformaram profundamente a realidade dessas formações sociais:

"Nascido em 1961, o escritor ucraniano Andreï Kourkov fala, a seu modo, de algo que não era raro: “Essa sociedade era fundada na amizade. Era possível bater na porta dos vizinhos, se precisasse de dinheiro, eles o emprestariam. Depois da queda, toda essa solidariedade ruiu." (Chauvier, Le Monde Diplomatique, 2004)

"Nas empresas, durante as pausas para café às 10 e às 15 horas, as pessoas conversavam umas com as outras. “A Alemanha Oriental se integrava confortavelmente no Kollektiv, da creche ao trabalho”, destaca Wolfgang Engler, professor de sociologia da cultura na escola de teatro Ernst Busch. “Seu eu se construía entre necessidades individuais e necessidades coletivas, o que permitia que o grupo encontrasse um equilíbro.” Muitas pressões do alto ameaçavam o grupo, muitas pressões de baixo ameaçavam o Estado. “Essa consciência de estar junto criou sentimentos de solidariedade.

(...)

E as mulheres? Saíram ganhando? “O modelo do Leste era a mulher trabalhadora, no Ocidente é a dona de casa”, lembra Inge Dolling, professora na Universidade de Potsdam. Também na RDA o grosso das tarefas domésticas cabia a elas. Mas o crescimento do desemprego conjugado com o desmantelamento das creches minou a liberação – relativa – pelo trabalho: “Na RDA, 86% das mulheres trabalhavam, e hoje não passam de 56%.” E a fertilidade das alemãs orientais diminuiu pela metade em quinze anos, chegando ao nível de 1929! Diz Stefan Arndt: “Entre nós, as mulheres sozinhas com crianças se saíam bem. Agora, elas estão ameaçadas de mergulhar na pobreza. Mesmo quando se consegue uma vaga numa creche, esta abre às 9 horas e fecha às 14. Quem consegue viver trabalhando 3 ou 4 horas?” (Vidal, Linden; Le Monde Diplomatique, 2004)

A nostalgia destes "nativos" pela sociedade anterior tem motivos econômicos sim mas eles não são os únicos. Eles sentem falta também das relações sociais não mercantilizadas e individualizadas da sociedade que colapsou.

"Todo um continente de conhecimentos falta aos ocidentais para que eles compreendam o que é essa “perda” tão sentida: o universo de uma cultura, a densidade de uma vida social que não podem ser enquadrados com nenhuma ideologia. Onde classificar, nas suas gavetinhas, tanto a vanguarda quanto a cultura popular de massa que marcou gerações, as comédias musicais de Alexandrov e o jazz de Utesov, o humor de Ilf e Petrov, as aventuras do soldado Vassili Tiorkine, os personagens “aos pares” do cinema de Vassili Choukchine, a arte amadora dos clubes de fábricas e vasto movimento das canções de compositores, a “contestação” de massa mais importante nos anos 1960-1980? Onde situar a recente decisão dos bardos não-conformistas de todas as idades de consagrarem como “canção do século” a balada “Grenada” de Mikhaïl Svetlov, “poeta do Komsomol” dos anos 1920? Será possível transmitir mensagens dessa Atlântida que realmente existiu?" (Chauvier; Le Monde Diplomatique, 2004)

A representação ocidental matou a vida social. Incompreendidos, estigmatizados e censurados pelo Ocidente, os "nativos" se viram obrigados a relativizar por conta própria:

Vivíamos atrás da cortina de ferro”, explica o historiador Viktor Danilov. “Ignorando as realidades exteriores, acreditávamos viver na miséria do nivelamento. Agora que a cortina de ferro caiu (...) sofremos a provação da verdadeira miséria. Sabemos, hoje, que na época soviética, não vivíamos na miséria, mas numa “suficiência” nivelada, ainda que baixa. O sistema de saúde e de ensino era acessível a todos apesar dos privilégios dos ‘servidores do povo’. As filas existiam para que cada um pudesse ter o necessário, o que não é mais acessível, hoje, para a maioria”. (idem)

Quanto mais vivemos o capitalismo, mais nos perguntamos o que havia de errado com o socialismo”, resume o jornalista Wolfgang Herr. Normal, alguém irá dizer: ele escrevia no diário comunista Neues Deutschland. Mas todos os ossis, ou quase todos, repetem: “Nem tudo era tão mal ontem” e “nem tudo é tão bom hoje”. (Vidal, Linden; Le Monde Diplomatique, 2004)

Era mais fácil escapar às pressões da burocracia de ontem do que das pressões financeiras de hoje”. Os ossis se sentem tão impotentes quanto antes. “É verdade que hoje se pode esbravejar, mas de que adianta?” Nem o mínimo está garantido... [Peter Ensikat] (idem)

O poder da propriedade privada substituiu o da burocracia que controlava a propriedade estatal e trouxe mudanças intestinas no modo de produção e nas relações de poder:

"(...) a visão do passado é, portanto, filtrada pela experiência de “reformas de mercado”, cujo caráter desastroso é, entretanto, amplamente reconhecido. A primeira inspiradora dessas reformas, a socióloga Tatiana Zaslavskaïa, estima que os trabalhadores são “ainda mais alienados da propriedade e privados de direitos do que na época soviética. (...) A produção não está apenas reduzida, mas degradada do ponto de vista estrutural e tecnológico. (...) Setores que asseguravam as necessidades sociais na época soviética e aumentavam, ainda que modestamente, a qualidade de vida da população, hoje se degradam cada vez mais. As conquistas democráticas da época da perestroïka e da glasnost estão em perigo. (...) A polarização da sociedade tomou um vulto colossal: de 20 a 30% da população vivem sérias privações, habitam moradias em ruínas, têm fome, são doentes e morrem prematuramente”. (Chauvier, Le Monde Diplomatique, 2004)

"Segundo o jornalista Wolfgang Herr, “na RDA, uma brincadeira sobre Honecker corria o risco de criar os piores embaraços, mas uma pessoa podia chamar seu chefe de “porco”. Na Alemanha Ocidental, alguém pode xingar Schröder disso, mas não pode fazer o mesmo com o chefe, a não ser que queira ser mandado embora”. (Vidal, Linden; Le Monde Diplomatique, 2004)

Para além da estigmatização e da censura algumas questões aparentemente mais lúcidas podem ser feitas pelos ocidentais.

Uma delas seria fazer uma analogia dos nostálgicos do socialismo real com alguns das ditaduras militares latino-americanas. Não precisa ir muito a fundo para demonstrar que tal exercício se mostra impreciso e defeituoso. Basta assinalar que os regimes autoritários dos militares representaram uma mudança muito mais política do que sócio-econômica, até porque foram impostas para manter tal formação societária. Além do mais os índices de saudosistas de tais regimes é infimamente inferior ao dos "nativos" do socialismo real.

A forma como ocorreu a transição também é outro elemento que pode ser lembrado. Aqui a China nos dá um bom exemplo. Restaurando, aos poucos, o capitalismo desde os anos 80, o país asiático tem presenciado uma série de conflitos internos, a maioria ocultado pela burocracia e pela grande mídia ocidental.

Em 2009 um executivo foi linchado por trabalhadores da Tonghua Iron and Steel, uma empresa de siderurgia, após o anúncio dos planos de fusão da empresa que acarretariam na demissão de 30 mil de um quadro de 35 mil funcionários. (Último Segundo, 27/07/2009)

Poucos dias depois a mobilização de trabalhadores de outra empresa siderúrgica, a estatal Linzhou Iron and Steel Co., derrotou os planos de privatização do governo chinês, após manter trancado em uma sala, por quatro dias, um representante do governo. (O Estado de São Paulo, 16/08/2009)

Apesar do regime ditatorial e do propalado "benéfico" crescimento econômico os conflitos sociais na China têm crescido nos últimos anos e passam dos milhares.

"(...) o número de "incidentes de massas" na China subiu de 10 mil, em 1994, para 74 mil uma década mais tarde e, em 2006, chegou a 90 mil." (UOL Economia, 07/01/2009)

Até a sede do Partido Comunista já foi alvejada:

"Ainda na terça-feira, foi noticiado com grande destaque nos jornais nacionais a invasão da sede do Partido Comunista em Longnan, noroeste da China, onde mais de dois mil agricultores protestavam contra a desapropriação das terras que cultivavam. Eles atearam fogo em diversos veículos e entraram em confronto com a polícia." (BBC Brasil, 19/11/2008)

Como se percebe os conflitos sociais que se alastram pela China, e que se dão de forma espontânea já que não há oposição legalizada e os sindicatos são atrelados ao governo, ocorrem contra a precarização das condições básicas de vida atacadas pelo novo sistema econômico introduzido. Mas um analista pró-ocidente consegue formular uma tese em outra direção:

Yan Xiaojun é professor assistente no departamento de Política de Adminstração Pública da Universidade de Hong Kong e acredita que o aumento da visibilidade das manifestações se deve ao processo de enriquecimento dos últimos 30 anos.

"As reformas não apenas deram poder aos moradores do campo em termos econômicos, mas também proveram maior acesso a informação e comunicação, o que facilita ações políticas coletivas", afirma. (idem)

Por fim pode se argumentar que os "nativos" não foram preparados para atuar em uma economia de mercado. Esta assertativa pode ter duas vias: uma no caráter de "qualificação" e outra no cultural.

A primeira hipótese, a da qualificação, parte do princípio de que sem uma profissão capaz de ser absorvida pelo mercado os "nativos" ficaram sem ocupação e se tornaram "fracassados" dentro da nova ordem. Tal premissa é desmentida pela próprias corporações capitalistas que se instalam nas regiões que restauraram o capitalismo:

"Mão-de-obra barata e qualificada faz do Leste Europeu um pequeno Vale do Silício" (Exame, 19/04/2007)

"Além de barata, a mão-de-obra é altamente qualificada. "A equipe com que trabalhei foi a melhor que poderia ter encontrado", diz David Varod, executivo do estúdio americano Nu/Image/Millenium, que filmou recentemente na Bulgária parte do longa The Black Dahlia, a nova obra de Brian de Palma. (Exame, 13/01/2006)

"Três fatores transformaram a região na queridinha dos investidores externos. O primeiro são a abundância e o baixo custo da mão-de-obra qualificada. Os regimes comunistas do Leste Europeu deixaram como herança boas universidades, com foco acadêmico em ciências exatas e na formação de técnicos para o setor industrial. A juventude da Polônia está entre as mais instruídas do mundo." (Veja, 25/01/2006)

Esse fator seria o responsável pelo fato de o Leste Europeu ter se tornado, entre os chamados países em desenvolvimento, a segunda região do mundo em volume de investimentos estrangeiro, ficando atrás apenas da China. (idem)

A segunda hipótese, a do caráter cultural, parece ser a mais pertinente e de fato é o argumento mais forte. É inegável que esses "nativos" se depararam com uma nova cultura, mas os ocidentais não julgavam essa cultura infinitamente superior a deles? E não há resistência a essa cultura, qual seja a de economia de mercado, dentro do próprio ocidente? Até que ponto os próprios ocidentais estão preparados e suportam essa cultura pretensamente superior a tudo o que já existiu?


O capitalismo em perspectiva histórica e as alternativas a ele

Se analisarmos a História do capitalismo perceberemos que em grande parte da sua existência vigorou o liberalismo como pressuposto econômico. O intelectual liberal mais festejado da atualidade, o economista austríaco, Ludwig von Mises, definiu os séculos XVIII e XIX como sendo os dos "anos dourados do liberalismo". (Mises, 1987) Friedrich Hayek, outro austríaco da mesma escola de pensamento de Mises, definiu o ano de 1870 como o de início do declínio do liberalismo. Porque desta data? Porque neste período as mobilizações sociais se radicalizavam cada vez mais e em 1871 a classe trabalhadora extrapolou os limites das reivindicações por melhorias dentro do regime, para tomar o poder e tentar montar a sua própria sociedade como atesta a experiência da Comuna de Paris. (Losurdo, 2006)

A Comuna foi esmagada mas o sinal vermelho já havia sinalizado às classes capitalistas que seria preciso "entregar os anéis para não perder os dedos". Os setores reformistas da esquerda interpretaram a "entrega tática dos anéis" com uma perspectiva estratégica. Fortaleceu-se, no seio da esquerda, a ideia segundo a qual o capitalismo poderia ter seus males "moderados", havendo assim a possibilidade de "humanizar" esse sistema econômico. Eduard Bernstein, do Partido Social-Democrata Alemão (SPD) foi o grande formulador e difusor dessa crença entre o final do século XIX e início do XX.

Veio a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa. Diferente da Comuna de Paris ela sobreviveu às tentativas de esmagamento militar do ocidente. A classe trabalhadora ganhava um ponto de referência. As classes dominantes capitalistas, aterrorizadas, se viram obrigadas a entregar mais "anéis". Neste sentido é notória a carta de Keynes enviada ao então Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson:

"(...) quanto mais aniquilado e mais próximo do bolchevismo estiver um país, obviamente mais necessidade terá de assistência. Mas, é menos provável que a empresa privada venha a fazê-lo."

Os setores reformistas da esquerda acabaram ganhando uma formulação científica para o seu programa e abraçaram de forma estratégica um programa que era tático para as classes capitalistas ao redor do globo. As palavras de Keynes não deixam dúvidas de que lado da trincheira ele lutava:

"(...) Como posso adotar um credo que, preferindo a lama ao peixe, exalta o proletariado rude acima da burguesia e da intelligentsia, que são, na vida, sejá lá com que falhas, a prosperidade e, certamente, os portadores das sementes de todo o avanço humano?

(...)

Quanto à luta de classes como tal, meu patriotismo local e pessoal, como o de todos, exceto algumas pessoas desagradáveis e entusiastas, liga-se ao meu próprio ambiente. Posso ser influenciado pelo que parece a mim ser justiça e bom senso: mas a guerra de classes me encontrará do lado da burguesia educada." (cit. in Mészáros, 2008, p.65)

Assim, após a Segunda Guerra Mundial cria-se o chamado Estado de Bem-Estar Social na Europa. Segundo Hayek o Estado Providência só foi erigido devido a existência da União Soviética. Este Estado juntamente com os horrores do stalinismo, que já vinham sendo criticados por outros socialistas, fortaleceram o ideal da possibilidade de humanizar o sistema capitalista. Porém dois fatos iriam demonstrar os limites do reformismo: a reestruturação produtiva e a crise de 1973.

Estes dois fatores tornaram o pacto social do Estado Providência um fardo pesado demais para as classes capitalistas continuarem a carregar. Logo passaram a exigir e promover o seu desmonte. Os anéis começavam a ser recolhidos. Tem início a aplicação do que ficou conhecido como neoliberalismo, que nada mais é do que a restauração do liberalismo em uma nova conjuntura histórica.

O neoliberalismo, mais do que uma escolha política, era - e ainda é - uma necessidade econômica para as classes capitalistas.

Acomodados na ordem capitalista o discurso dos reformistas foi se rebaixando até chegar em muitos casos à defesa do próprio neoliberalismo.

Foi, por exemplo, o Partido Socialista que apoiou a entrada da França na União Européia. Foi a socialdemocracia grega que aplicou o ajuste fiscal draconiano contra o seu povo na atual crise financeira em curso, algo que nem o governo conservador que o antecedeu conseguiu. Foi a gestão neoliberal do Estado pelo SPD (partido socialdemocrata histórico da Alemanha) o responsável pelo fortalecimento de Ângela Merkel e a cisão de alguns dirigentes que foram para o partido Nova Esquerda. Sem falar do Partido Trabalhista inglês que se mostrou um colaborador íntimo das guerras imperialistas levadas a cabo pelos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão - este partido teve a sua política de colaboração "cientificizada" pelo sociólogo Anthony Giddens, autor de prestígio dentro das Ciências Humanas e Sociais.

Não bastasse isso, os países de capitalismo "humano" keynesianos, apontados como modelo pelos reformistas, há muito estão implementando medidas de "desumanização" do capitalismo. O mercado de trabalho na Suécia, por exemplo, foi flexibilizado ainda nos anos 80 (Pastore, 1994, p.27 e 164). O da Dinamarca é considerado, hoje, um dos mais flexíveis do mundo (Heritage Foundation, 2010). Noruega (Pastore, 1994, p.30 e 163) e Finlândia (Pastore, 1994, p.31 e 164) também flexibilizaram as suas relações de trabalho.

Flexibilização é um eufemismo para precarização do trabalho e ela assume várias facetas. Duas delas são o trabalho a tempo parcial e o trabalho temporário. Estudo do empresário gaúcho, Dagoberto Lima Godoy, entusiasta dessas medidas, mostrou que em 1995 o índice de pessoas trabalhando nestas condições na Suécia já era de 38,3% do total da mão-de-obra empregada e na Noruega este índice já havia chegado a 40,3% (Godoy, 2005, p.80).

Claro que ele utiliza esses dados para reforçar a sua tese de defesa da reforma trabalhista no Brasil, afinal se até os países de capitalismo "humano" teriam criado consciência e se "rendido" a esta "necessária" reforma de mercado, quem seríamos nós, réles subdesenvolvidos, para resistir à "modernização" e seguir teimosamente agarrados a uma legislação "protecionista" e "arcaica" que emperra o desenvolvimento do país?

Cabe ressaltar que todos estes países estão a promover privatizações, inclusive em setores estratégicos e sociais. A Suécia, por exemplo, realizou uma reforma previdenciária em 1999 que reduziu as aposentadorias e privatizou parte do sistema (Previdência Social, 1999). A reforma desse setor na Dinamarca, nos anos 90, também fortaleceu a capitalização (Costa, 2005), fazendo com que "a previdência complementar deixa de ser uma política pública", conforme esclareceu Ole Beir Soeresen, diretor do Fundo de Pensão dos Servidores da Dinamarca (Previdência Social, 2003). Noruega e Finlândia também enveredaram para o caminho da capitalização (Revista Bovespa, 2003).

O sistema elétrico destes países foi liberalizado nos anos 90: Noruega, 1991; Suécia, 1996; Finlândia, 1998 e Dinamarca, 1999 (Coutinho e Mueller, 2007, p.17). Nem a educação passou incólume. Os mais entusiasmados já falam de uma "revolução liberal" na Suécia (National Review Online, 30/09/2010). Exageros à parte, o fato é que algumas medidas adotadas pelo país nos últimos anos já estão servindo de referência de austeridade. Não foi por acaso que o primeiro-ministro inglês, David Cameron, disse que a Inglaterra deveria adotar as "escolas livres" suecas - escolas privadas subsidiadas pelo governo. (Folha Online, 06/05/02010).

Além do mais, estes países apresentam os males incuráveis do capitalismo como o desemprego elevado: o da Suécia está em 7,4% e estima-se que termine o ano na casa dos 8,5% (The Swedish Wire, 16/09/2010) e o da Finlândia encontra-se em 7,3% (Helsinki Times, 21/09/2010).

Culpa da crise financeira? Em realidade estas têm sido, em média, as taxas de desemprego dos últimos anos.

É certo que estes países ainda mantêm uma série de benefícios que nunca se fizeram presentes nos países subdesenvolvidos. Nisso se agarram alguns reformistas, principalmente os dos países periféricos. Mas para saber se está havendo avanço ou retrocesso nos benefícios sociais deve-se comparar estes países com eles mesmos e não simplesmente utilizá-los como padrão para a implantação de um modelo que está se desintegrando nos próprios países admirados. Em outras palavras: a Suécia deve ser comparada a ela mesma e não ao Brasil.

Quem compreende a natureza do funcionamento do sistema capitalista sabe que não há saída dentro dos seus marcos. Suas contradições não podem ser reguladas. Sua moderação têm limites. A atual crise financeira está mostrando que as classes dominantes não têm um modelo de capitalismo alternativo para substituir o vigente. Diante da crise do neoliberalismo só conseguem oferecer mais neoliberalismo. Mais anéis estão sendo recolhidos. Se o Estado havia se "aberto" às outras classes da sociedade ele não deixou de ser, em última instância, um instrumento à serviço das classes dominantes. A luta de classes, negada por muitos em determinado período, está escancarada na Europa. Tudo isso a atual crise financeira está mostrando abertamente.

Além da crise financeira o modo de produção capitalista ameaça hoje a espécie humana como um todo conforme atesta a questão ambiental, à qual já está vitimando culturas que nada tem a ver com ela. O capitalismo é ecologicamente insustentável. Tinha razão o ex-presidente americano, George W. Bush, quando disse que se seguisse o limitado Protocolo de Kyoto quebraria a economia americana.

Substituir esse sistema econômico é cada vez mais urgente. Mas pelo o quê? Há uma crise de paradigma. Não houve a formulação de nenhuma alternativa crível, fora o socialismo, ao capitalismo. Este, por sua vez, teve a sua credibilidade ferida de morte pelo stalinismo e as ditaduras burocráticas. Ainda assim seria possível outro mundo socialista?

O presente trabalho responde de forma positiva a esse questionamento e neste sentido os relatos dos "nativos" aqui coletados representam um sopro de esperança. Luckács dizia que o pior socialismo ainda seria melhor do que o melhor capitalismo. (Negt, 1984, p.21) Talvez ele tenha sido demasiadamente otimista. Porém as opiniões dos "nativos" não permitem descredenciar completamente a sua assertativa. A menos que não se considere o stalinismo e seus derivados como o pior socialismo construído. Mas ele não foi a única tentativa de construção de uma sociedade pós-capitalista. Pensemos em experiências como a Comuna de Paris no século XIX cujo modelo era distinto do que se passou no século XX.

Superar o capitalismo é uma tarefa árdua, sem dúvida. Mas deve ser buscada. Hoje, mais do que nunca!


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