quarta-feira, 10 de março de 2010

A crise na Irlanda, por Paul Krugman

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Enquanto alguns liberais seguem o seu silêncio sepulcral sobre a crise na Irlanda[1], o economista americano Paul Krugman, que de marxista não tem nada, analisou a atual crise financeira e fez uma analogia entre o seu país de origem e o país europeu outrora festejado nos círculos do livre mercado.

O artigo é interessante na medida em que refuta as falácias dos fundamentalistas do mercado que afirmam que a atual crise econômica tem "as impressões digitais do governo em todos os locais"[2], porém, cabe ressaltar, contém as limitações de alguém que acredita que as crises capitalistas possam ser evitadas com a simples regulação.


Segunda, 8 de março de 2010, 13h49

Um espelho irlandês

Paul Krugman, The New York Times

Todo mundo tem uma teoria sobre a crise financeira. Essas teorias vão do absurdo ao plausível - de argumentos de que os democratas liberais de alguma forma pressionaram os bancos a emprestar dinheiro a pobres que não mereciam (embora os republicanos controlassem o Congresso) à crença de que instrumentos financeiros exóticos fomentaram a confusão e a fraude. Mas o que sabemos realmente?

Bem, de certa forma, a simples escala da crise - a forma como afetou muito, embora não totalmente, o mundo - é, no mínimo, útil para a pesquisa. Podemos olhar para os países que evitaram o pior, como o Canadá, e perguntar em que eles acertaram - por exemplo, limitar a alavancagem financeira, proteger os consumidores e, sobretudo, evitar deixar-se dominar por uma ideologia que rejeita qualquer necessidade de regulação. Podemos também olhar para os países cujas instituições financeiras e políticas pareciam muito diferentes das dos Estados Unidos, mas que também foram abaladas, e tentar encontrar motivos comuns.

Então, vamos falar da Irlanda.

Como destaca um novo artigo dos economistas irlandeses Gregory Connor, Thomas Flavin e Brian O'Kelly, "quase todos os fatores aparentemente causadores da crise dos Estados Unidos não estão presentes no caso irlandês, e vice-versa. Mesmo assim, o formato da crise da Irlanda foi muito semelhante: uma enorme bolha imobiliária - os preços subiram mais em Dublin do que em Los Angeles ou Miami - seguida de uma grave quebradeira de bancos que somente foi contida por meio de um caro plano de socorro governamental".

A Irlanda não tinha nenhum dos vilões favoritos da direita americana: não houve Decreto de Reinvestimento Comunitário (Community Reinvestment Act, em inglês), nem Fannie Mãe ou Freddie Mac. Mais surpreendente, talvez, tenha sido a insignificância das finanças exóticas: o colapso da Irlanda não foi uma história de obrigações de dívida e derivativos de crédito "colateralizados" (com lastro em garantias): foi um antiquado e comum caso de excesso, no qual os bancos fizeram grandes empréstimos a clientes questionáveis e os contribuintes acabaram pagando a conta.

Então, o que temos em comum? Os autores do novo estudo sugerem quatro "fatores causadores profundos".

Em primeiro lugar, houve uma exuberância irracional: em ambos os países, compradores e financiadores convenceram-se de que os preços dos imóveis, embora já estivem muito elevados para os padrões históricos, continuariam a subir.

Segundo: houve um grande fluxo de dinheiro barato. No caso dos Estados Unidos, muito do dinheiro barato veio da China; no caso da Irlanda, veio principalmente do resto da zona do euro, onde a Alemanha se tornou um gigantesco exportador de capital.

Terceiro: protagonistas-chave da crise tinham um incentivo para assumir grandes riscos, porque era "cara" que sairiam ganhando, "coroa" que outros perderiam. Na Irlanda, essa jogatina moral era em grande parte de caráter pessoal: "os dirigentes dos bancos levianos saíram com suas enormes fortunas intactas". Também houve muito disso nos Estados Unidos: como Lucian Bebchuk, de Harvard, e outros ressaltaram, os altos executivos das instituições financeiras americanas falidas receberam bilhões em pagamentos "relacionados a desempenho" antes de suas companhias afundarem.

Mas a semelhança mais impressionante entre a Irlanda e os Estados Unidos foi a "imprudência regulatória": as pessoas encarregadas de manter os bancos seguros não fizeram seu trabalho. Na Irlanda, os reguladores evitaram essa tarefa, em parte, porque o país estava tentando atrair negócios estrangeiros e, em parte, por causa do favoritismo: banqueiros e incorporadoras de imóveis tinham laços estreitos com o partido dominante.

Aqui, também houve muito disso, mas a questão principal foi a ideologia. Na verdade, os autores do artigo irlandês interpretaram mal isso, enfatizando a forma como os políticos americanos celebravam o ideal de possuir um imóvel; sim, eles fizeram discursos nesse sentido, mas isso não teve muito efeito sobre os incentivos para as instituições que concediam empréstimos.

O que realmente teve importância foi o fundamentalismo do livre mercado. Foi isso que levou Ronald Reagan a declarar que a desregulação solucionaria os problemas das instituições de poupança - o resultado real foram prejuízos enormes, seguidos por um socorro financeiro gigantesco bancado pelo contribuinte - e Alan Greenspan a insistir que a proliferação de derivativos, na verdade, havia fortalecido o sistema financeiro. Foi em grande parte graças a essa ideologia que os reguladores ignoraram os riscos crescentes.

Então, o que podemos aprender a partir da forma como a Irlanda, com instituições tão diferentes, teve uma crise financeira semelhante à dos Estados Unidos? Principalmente, que temos de nos focar tanto nos reguladores quanto nas regulações. Sem dúvida, vamos limitar a alavancagem e o uso da securitização - que constituíram parte do que o Canadá fez de certo. Mas tais medidas não farão diferença a menos que sejam reforçadas pelas pessoas que entendem ser seu dever dizer não a banqueiros poderosos.

É por isso que precisamos de uma agência independente para proteger os consumidores de serviços financeiros - novamente, uma coisa certa que o Canadá fez -, em vez de deixar a tarefa para agências que têm outras prioridades. E, acima de tudo, precisamos de uma profunda mudança de atitudes, uma aceitação de que deixar os banqueiros fazerem o que querem é uma receita para o desastre. Se isso não acontecer, teremos fracassado em aprender com a história recente - e estaremos condenados a repeti-la.


- Paul Krugman é economista, professor da Universidade de Princeton e colunista do The New York Times. Ganhou o prêmio Nobel de economia de 2008. Artigo distribuído pelo New York Times News Service.

O original encontra-se em:
http://www.nytimes.com/2010/03/08/opinion/08krugman.html

Publicado em português por:
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4307891-EI12928,00-Um+espelho+irlandes.html
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[1] A crise na Irlanda e o silêncio neoliberal (09/02/2010):
http://blogdomonjn.blogspot.com/2010/02/crise-na-irlanda-e-o-silencio.html

[2] De Quem é a Culpa? (22/09/2008):
http://rodrigoconstantino.blogspot.com/2008/09/de-quem-culpa.html
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